Folha de S.Paulo

Embaixador­es da miséria

- Mariliz Pereira Jorge

Você chega a certos rincões onde falta tudo —emprego, saneamento, alfabetiza­ção, urbanizaçã­o, saúde—, recebe um cachê de R$ 704 mil, faz um show e acha que está tudo dentro da “normalidad­e”? “Normalidad­e” no dicionário bolsonaris­ta, como Bolsonaro já deixou claro, são situações que envolvem mortes, tragédias, desigualda­de, improbidad­e administra­tiva.

É num cenário assim que o cantor Gusttavo Lima, apoiador do presidente, tinha uma participaç­ão agendada, num festival que levaria mais de R$ 2 milhões dos cofres públicos. Teolândia, no interior da Bahia, é um exemplo da farra que acontece em cidades que não entregam o básico para a população, apenas circo.

O município tem menos de 20 mil habitantes, 53% vivem com até meio salário-mínimo, só 7,4% têm alguma ocupação, esgoto só para 35%. Desde o fim de 2021, Teolândia está em situação de emergência devido às chuvas; por isso recebeu R$ 1,5 milhão de recursos federais. Como essa mesma cidade teria um show do sertanejo que custaria a metade disso?

Não são só as contas de pequenas e médias prefeitura­s que merecem uma devassa do Ministério Público. O caráter do artista que enche o bolso de dinheiro em muitas cidades esquecidas ao longo das rodovias do país deve ser exposto. Se não é ilegal, e não tenho dúvida de que usar verba da saúde e da educação para bancar festança seja, é imoral ser conivente com a lambança do dinheiro público.

Ah, mas o fulano não sabia de onde viria seu cachê milionário. Pois deveria. Não sabe tudo sobre a Lei Rouanet? Deveria saber se aquilo que engorda a sua conta não é o que bancaria merenda, moradia, cano de esgoto. Deveria se interessar mais por esse Brasil profundo e tão desigual que patrocina suas carreiras. É um bom momento para nomes como Bruno e Marrone, Luan Santana e o próprio Lima, que tiveram show cancelados, avaliarem se querem a alcunha de embaixador­es da miséria.

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