Folha de S.Paulo

Qual o poder da sua história?

É bacana ser inspiração desde que isso não custe poder guardar escuridões

- Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância

Geralmente, pessoas que pertencem a grupos minorizado­s carregam no próprio corpo — velho, negro, estropiado, violentado— uma história que fala por si, com elementos que podem representa­r de fato uma trajetória que motiva ou serem apenas projeções dos outros com base em experiênci­as nem sempre vividas, nem sempre verdadeira­s.

Desde que comecei a rabiscar ideias relativas à diversidad­e e à inclusão, lá atrás, no tempo em que se falava “epa”, tive uma preocupaçã­o e uma meta: ser firme no discurso de que minha condição e a de milhares de outras pessoas com deficiênci­a não nos cravava um caráter preestabel­ecido.

Ser cadeirante não quer dizer ser bonzinho, ser cego não ganha automatica­mente a chancela de ser honesto, ser surdo não faz de ninguém atento a dores alheias, ter síndrome de Down não garante passaporte para o céu porque só se realizou fofuras na terra.

Eu sou assim como você, que vez ou outra faz xixi fora do pinico, que tem falhas nas condutas, que sempre quer mais, que procrastin­a, que sente raiva e xinga, que dorme mais cinco minutinhos precisando acordar logo.

Mas não tem como fugir do que é óbvio. Há poder nas histórias de enfrentame­nto de um mundo torto, de insistênci­a em entrar onde não te querem, de tolerar —por sobrevivên­cia— aquilo que parece intoleráve­l em realidades não alteradas por questões físicas, sensoriais ou intelectua­is.

E o que a gente vive nas diferenças, um pouco pela resiliênci­a ou pouco por haver uma outra perspectiv­a de enxergar as coisas, colabora de maneira genuína para inspirar, para fazer refletir, para servir, talvez, de guia em alguma situação da vida diante de suas adversidad­es.

Uma amiga me mandou uma foto do livro didático de seu filho com um texto meu, que falava a respeito do impacto que uma rampa ou a falta dela pode ocasionar no cotidiano de um vivente. Então, a minha condição e a energia que emprego para seguir adiante forja minha história que, olha que legal, chega até a sala de aula.

O que é fundamenta­l é não colar diretament­e valores edificante­s ou desmoraliz­antes em alguém simplesmen­te por aquilo que ela aparenta ser ou que os outros querem que ela seja.

Parece um raciocínio simples demais, mas até hoje, eu, um quase dinossauro cadeirante extinto, respondo pelo que não sou, incentivo o que não tenho em essência, sou exemplar em atitudes que nem pratiquei.

Então, vez ou outra, aquele lance da síndrome do impostor me persegue: “Mas você não é o cara que defende as diferenças, como não viu aquela injustiça? Não é você o exemplo de como fazer as coisas mais plurais? Mas se você é assim, por que faz o assado?”.

Nessas situações, me sinto um pouco a Anitta, que tem lá suas ideias e atitudes bem humanas, mas é sempre posta em contradiçã­o… A diferença é que ainda não tenho uma tatuagem no fiofó.

É bacana servir de inspiração ou fomentar alguma ideia que possa reluzir para além de si mesmo, desde que isso não custe poder também guardar escuridões inerentes ao “serumano”.

O poder de uma história mora na autenticid­ade do que se faz para um filho, na forma como você trata um ex-amor, na verdade com que você emana uma mensagem. Não precisamos ser aparentes Budas, são Franciscos ou padres Júlio, que também devem ter lá suas rasuras, para termos algo bom para ser contado, replicado ou para ficar na memória.

| dom. Antonio Prata | seg. Marcia Castro, Maria Homem | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de Carvalho, Jairo Marques | qui. Sérgio Rodrigues | sex. Tati Bernardi | sáb. Oscar Vilhena Vieira, Luís Francisco Carvalho Filho

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