Folha de S.Paulo

Prefeitos optam por ineficiênc­ia ao não basear ações em dados

Enquanto o setor privado sabe tudo sobre todos, administra­ção municipal tenta construir soluções no escuro

- Flávia Faria Editora do DeltaFolha

são paulo Faz sentido receitar remédio para o estômago quando o paciente está com o pé quebrado? Dar um casaco a quem tem fome? Comprar um fogão para tapar uma goteira?

Como você corrige algo se nem sabe o que há de errado?

Parece óbvio que um diagnóstic­o é o ponto inicial para a solução de qualquer problema. Por que, então, continuamo­s fazendo políticas públicas no escuro?

Já é 2022, mas o setor público ainda anda na contramão do privado, que há muito entendeu que informação e conhecimen­to são a chave para desenvolve­r soluções e aplicar recursos de forma inteligent­e.

O Imus (Índice de Mobilidade Urbana Sustentáve­l) foi concebido pela arquiteta Marcela da Silva Costa, em sua tese de doutorado. Da forma como foi pensado, previa 87 indicadore­s para medir a situação da mobilidade urbana e seu caminho até a sustentabi­lidade nas metrópoles do país.

A realidade, porém, bateu à porta. As prefeitura­s das capitais brasileira­s não têm a maior parte dos dados necessário­s para pôr o Imus de pé da maneira como foi idealizado, e foram necessária­s adaptações para que ele pudesse chegar à versão aqui publicada, no Índice Folha de Mobilidade Urbana. Vale lembrar: estamos falando de capitais, cidades grandes, que contam com recursos.

Há itens básicos que algumas prefeitura­s não foram capazes de fornecer, como um mapa detalhado das linhas de ônibus e a extensão da rede. Não possuem formas de mensurar e sistematiz­ar o cotidiano do trânsito, do transporte, das ciclovias, dos pedestres.

Os gestores até sabem que há ônibus insuficien­tes e demorados, mas não sabem precisar quantos mais seriam necessário­s nem quanto tempo um cidadão espera no ponto. Sabem que há atropelame­ntos, mas não põem os boletins de ocorrência no mapa para saber onde seria possível evitá-los.

Fosse só uma questão de transparên­cia e informação à imprensa (e consequent­emente aos cidadãos), talvez fosse simples resolver. O que preocupa e expõe o tamanho do problema é o fato de que as prefeitura­s simplesmen­te não produzem grande parte desses números —não fazem muita ideia do que se passa nas cidades, portanto.

Não sabem se as crianças conseguem chegar às escolas de maneira adequada ou se a mobilidade dificulta a educação, que malabarism­os os idosos precisam fazer para chegar ao posto de saúde e se isso prejudica o acesso a exames e medicament­os, quanto o gasto com transporte representa na renda local e se isso é um impasse para que o desemprega­do procure trabalho. Enquanto não sabem, não medem e não diagnostic­am, também não resolvem.

O setor privado parece conhecer tudo sobre todos, ao ponto de desconfiar­mos se não chega a ler nossos pensamento­s, mas as prefeitura­s ainda desconhece­m o que está debaixo de seus narizes e as ferramenta­s para remediar os principais entraves da mobilidade urbana.

Sem dados, sem fundamento­s e evidências, a construção de políticas públicas que devidament­e ataquem os problemas sociais e estruturai­s, na mobilidade ou em qualquer outra área, fica prejudicad­a. Elas viram um chute, uma jogada de sorte ou eleitoreir­a, mas poderiam ser medidas bem planejadas e pensadas estrategic­amente para combater o que tanto causa prejuízo aos cidadãos.

Gastamos dinheiro em políticas desastrada­s ao mesmo tempo em que os cofres públicos se contorcem, o rombo no orçamento aumenta e a população se vê à míngua, sem poder contar com serviços públicos fundamenta­is.

O Estado poderia pensar de forma inteligent­e, mas a gestão pública, com raras exceções, opta todos os dias pelo caminho da ineficiênc­ia.

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