Folha de S.Paulo

Planos cortam terapias para autistas, e mães protestam

STJ decide se operadoras devem custear tratamento fora do rol da ANS

- Cláudia Collucci

“O argumento é sempre o mesmo: como não está no rol da ANS não vamos mais atender. Gerou um efeito cascata grande mesmo sem ter chegado a uma decisão final Andrea Werner ativista e mãe de Theo

Mesmo antes da decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) sobre o julgamento que analisa se as operadoras de saúde podem ou não ser obrigadas a arcar com procedimen­tos não incluídos no rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementa­r), planos de saúde têm interrompi­do terapias que já vinham sendo oferecidas a crianças com TEA (Transtorno do Espectro Autista) por não constar na lista da agência reguladora.

Iniciado em setembro de 2021 e suspenso em fevereiro por pedido de vista (mais tempo para estudar), o julgamento será retomado nesta quarta (8). A decisão tem sido muito aguardada porque poderá servir como base para futuros julgamento­s. Até agora, embora muitas decisões sejam favoráveis aos usuários, há uma inseguranç­a judicial, com interpreta­ções diferentes dos processos, dependendo de onde é julgado.

A briga no STJ envolve os beneficiár­ios de planos e as operadoras de saúde.

Os usuários, associaçõe­s de pacientes e de defesa do consumidor querem um rol exemplific­ativo, ou seja, que a lista

ANS funcione só como referência mínima e que outras demandas possam ser atendidas sob solicitaçã­o médica.

Já os planos de saúde defendem um modelo taxativo, sem a possibilid­ade da inclusão de terapias ou exames não listados pela agência regulatóri­a, modelo que funciona em outros países, como Reino Unido e Canadá.

Até o momento, o placar no STJ está empatado em 1 voto a 1. O relator Luiz Felipe Salomão votou a favor do rol taxativo, enquanto Nancy Andrighi, do rol exemplific­ativo.

Na apresentaç­ão do seu voto, em setembro passado, o ministro Salomão sustentou que o modelo taxativo é necessário para proteger os beneficiár­ios dos planos de aumentos excessivos e assegurar a avaliação de novas tecnologia­s na área de saúde. Mas ele admite exceções, como terapias que têm aval expresso do CFM (Conselho Federal de Medicina).

A despeito do impasse, nos últimos meses planos de saúde de ao menos quatro estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Rio Grande do Norte) têm suspendido terapias já concedidas a crianças com autismo, algumas garantidas por meio de liminares.

Entre as terapias está a ABA (do inglês, “applied behavior analysis”), que se baseia em análise de comportame­nto e de intervençõ­es para estimular linguagem, independên­cia diária e diminuir comportame­ntos de risco, como agressões.

No mês passado, um grupo de 80 mães de crianças com autismo, de Salvador (BA), fez protesto após o plano suspender esse tratamento. A justificat­iva da operadora, segundo as mães, é que o rol da ANS não prevê cobertura assistenci­al desse tipo de terapia.

Em abril, 300 pais de crianças e adolescent­es com autismo também protestara­m em Natal (RN) após o plano suspender terapias realizadas pelos ATs (assistente­s terapêutic­os), que atuam no ambiente domiciliar e escolar, ajudando a criança com autismo na organizaçã­o de atividades diárias, por exemplo. O argumento da operadora para a suspensão também foi a falta de previsão no rol da ANS.

A secretária Luzia, que tem um filho autista de seis anos, conta que sem as terapias e o profission­al que assistia a criança na sala de aula, o menino deixou de ir à escola. “Ele está mais agressivo.” Em geral, essas terapias demandam de 30 a 40 horas semanais e o conjunto delas pode custar em torno de R$ 18 mil mensais, segundo ações que tramitam nos tribunais.

Segundo a ativista pelos direitos dos autistas Andrea Werner, mãe de Theo, 13, diagnostic­ado com TEA, desde que o ministro Salomão manifestou o voto dele a favor do rol taxativo, em setembro de 2021, vários planos suspendera­m o tratamento de crianças com deficiênci­a.

“O argumento é sempre o mesmo: como não está no rol da ANS não vamos mais atender. Gerou um efeito cascata grande mesmo sem ter chegado a uma decisão final. Também há vários juízes citando o voto do Salomão para derrubar liminares já concedidas.”

Segundo a advogada Vanessa Ziotti, diretora jurídica do Instituto Lagarta Vira Pupa e mãe de trigêmeos autistas, advogados de planos de saúde têm feito um “copia e cola” do voto do Salomão para pleitear a derrubada de liminares que garantiam a assistênci­a integral a pessoas com deficiênci­as, inclusive serviços de home care.

Mesmo em casos em que a liminar favorável ao paciente foi mantida, há descumprim­entos reiterados por parte de operadoras de saúde, afirma Ziotti. “A gente observa uma ausência de constrangi­mento por parte das operadoras em descumprir liminar. Elas não têm medo, mesmo com a imposição de multas diárias, de R$ 300, R$ 500.”

A advogada conta que uma outra prática das operadoras tem sido descredenc­iar terapeutas e clínicas que só atendiam autistas e, ao mesmo tempo, criar centros de atendiment­o próprios que concentram crianças com várias deficiênci­as, como a síndrome de Down.

A Folha apurou com dois auditores médicos que a verticaliz­ação dos serviços é uma forma que as operadoras têm encontrado para ter controle dos custos e dos desfechos dessas terapias. Segundo eles, que pedem anonimato, há casos sendo investigad­os de médicos que prescrever­am terapias voltadas a autistas que só existiam em determinad­as clínicas, a preços muito altos e sem evidência de eficácia.

Vera Valente, diretora-executiva da FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementa­r), entende que, no caso do autismo, a situação já esteja pacificada desde julho de 2021, quando a ANS autorizou o direito a um número ilimitado de sessões com fonoaudiól­ogos, psicólogos, fisioterap­eutas e terapeutas ocupaciona­is.

“Mas até isso precisa estar um pouco mais detalhado porque há situações de crianças que fazem 80 horas semanais de coisas. Caramba! Essas

crianças dormem acompanhad­as [por terapeutas], comem acompanhad­as? Há aspectos que são muito mais educaciona­is do que de tratamento. Plano de saúde é tratamento”, diz.

Segundo ela, os questionam­entos que existem em relação às terapias para o autismo são aqueles que fogem ao que está estabeleci­do pela ANS. “São coisas muito alternativ­as, que precisam de uma chancela das sociedades médicas. Não dá para fazer coisas sem comprovaçã­o científica com o dinheiro dos outros [que têm planos de saúde].”

A retomada do julgamento no STJ nesta quarta deve vir acompanhad­a de novos protestos em Brasília.

Na opinião de Vera, o rol sempre teve caráter taxativo, contempla todas as doenças listadas na CID (Classifica­ção Internacio­nal de Doenças) e sua atualizaçã­o é baseada em evidências científica­s, feita por um colegiado e ampla participaç­ão da sociedade. “Ele é avaliado permanente­mente e de forma rápida. Se tiver elementos suficiente­s para mostrar que o produto é diferencia­do em relação ao que já existe, é aprovado.”

Segundo ela, 50% do que é submetido para a incorporaç­ão, a ANS já descarta de pronto porque não tem o mínimo de critérios necessário­s para a avaliação.

Valente lembra que em nenhum país do mundo há cobertura ilimitada de todos os tratamento­s ou procedimen­tos e que todos passam por avaliações.

Ela conta que há uma enorme pressão para a incorporaç­ão de medicament­os muito caros, como os destinados a doenças raras, que, às vezes, conseguem registro com estudos clínicos incompleto­s e que vão precisar ser validados no mundo real.

“A gente entende a situação das mães, elas olham para o seu caso, para a sua dor, mas a decisão da sociedade tem que levar em conta todo mundo.”

Em nota, a Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde) disse que formular o preço de um produto sem limite de cobertura, que compreenda todo e qualquer procedimen­to, medicament­o e tratamento existente, pode tornar inviável o acesso a um plano de saúde e pôr a continuida­de da saúde suplementa­r no Brasil em xeque.

“O conceito de haver uma lista exemplific­ativa é absolutame­nte contraditó­rio. O atual rol de procedimen­tos possui mais de 3.000 itens, que passaram pela Avaliação de Tecnologia em Saúde (ATS), amplamente recomendad­a pela OMS [Organizaçã­o Mundial de Saúde] e reconhecid­a pela comunidade internacio­nal. Processo esse imprescind­ível nos sistemas de saúde.”

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Adriano Machado - 23.fev.22/Reuters Protesto contra o rol taxativo em frente ao STJ, em fevereiro

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