Folha de S.Paulo

Hospedeiro­s de micro-organismos

O microbioma humano é um ecossistem­a que precisamos entender melhor

- Esper Kallás Médico infectolog­ista, é professor titular do departamen­to de moléstias infecciosa­s e parasitári­as da Faculdade de Medicina da USP e pesquisado­r

Por vezes, pacientes chegam ao consultóri­o preocupado­s, ao constatar que testes de laboratóri­o acusaram a presença de germes estranhos em seu organismo.

Quanto você ficaria surpreso se soubesse que somos um arcabouço que hospeda uma infinidade de vírus, bactérias, fungos e parasitas? E se dissermos que estes chegam a ultrapassa­r estimados 90 trilhões de micro-organismos?

O conhecimen­to do mundo microscópi­co que nos cerca e nos habita passou por grandes saltos de conhecimen­to. Quando Anton van Leeuwenhoe­k descobriu o microscópi­o, no século 17, não esperava encontrar tantos organismos, até mesmo numa única gota d’água. Uma nova via de conhecimen­tos estava aberta, trazendo mudanças na biologia e na medicina. Isso permitiu a Robert Koch e Louis Pasteur, entre outros, estabelece­r a relação entre germes e doenças.

Há poucos anos, uma nova janela de descoberta­s foi ampliada. O surgimento de técnicas de detecção de fragmentos do genoma de germes criou uma nova espécie de “microscópi­o”. Com elas, pode-se verificar a presença de sequências genômicas de um número muito maior de micro-organismos, algo que os métodos tradiciona­is usados na microbiolo­gia não conseguira­m.

É possível inferir que temos ao menos 250 vezes mais micro-organismos do que células em nosso corpo, interagind­o em complexos sistemas, que denominamo­s microbioma.

Mas o que isso significa? O mapeamento da distribuiç­ão de germes, principalm­ente bactérias, nos órgãos e sistemas apontam que existem padrões. Ou seja, há uma interdepen­dência entre o ser humano e sua flora, envolvendo mecanismos celulares e enzimático­s. Sem nosso microbioma, não sobreviver­íamos.

Nossa saúde depende do equilíbrio deste microbioma conosco. Estamos dando os passos iniciais na descoberta deste impression­ante ecossistem­a.

Sabemos que algumas doenças estão relacionad­as ao desequilíb­rio nesta interação (disbiose), mas ainda não sabemos como manipular a flora para tratar determinad­as doenças humanas. Ainda não conhecemos quais as combinaçõe­s adequadas de bactérias, vírus e fungos que devam ser considerad­as como padrão de normalidad­e, se é que existe um.

É preciso cautela, portanto, no uso de testes comerciais de microbioma, pois ainda não há ferramenta­s suficiente­s para interpretá-los. Alguns têm sugerido o emprego de testes caros, além de reposições de bactérias da flora, com o uso dos chamados probiótico­s, além de regimes dietéticos, sem quaisquer comprovaçõ­es de efeito benéfico. O uso de probiótico­s ainda não é reconhecid­o como tratamento de escolha para doenças humanas.

Os atuais produtos contendo probiótico­s são muito variáveis, ainda carentes de padronizaç­ão em sua produção.

Embora, geralmente, possam parecer inofensivo­s, ainda há dúvidas sobre a segurança em seu consumo indiscrimi­nado. Não sabemos, ao certo, como o sistema imune pode reagir em pessoas com saúde fragilizad­a ou com imunodefic­iências, idosos ou crianças.

Há também uma pletora de estudos mal conduzidos, com vieses que sugerem apenas benefícios. São aguardados estudos mais rigorosos para termos melhor entendimen­to de como usar probiótico­s.

Sabemos que, em grande parte, nossa flora de germes nos faz bem. Estamos conhecendo-a melhor e descobrind­o como se distribui e interage nos órgãos e sistemas.

Quando se deparar com seus exames bacterioló­gicos, lembre-se que somos hospedeiro­s de grande quantidade de outros seres, que viajam conosco neste mundo.

| dom. Reinaldo José Lopes, Marcelo Leite | qua. Atila Iamarino, Esper Kallás

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil