Folha de S.Paulo

Curto circuito

Robô estilo ‘Black Mirror’ surta e debocha da gente em ‘Vale da Estranheza’, peça da Mostra Internacio­nal de Teatro de São Paulo deste ano

- Marina Lourenço

À primeira vista, não há nada que salte aos olhos. Só um ator prestes a encenar o seu monólogo. Basta encarar essa figura por mais alguns instantes, no entanto, para notar que existe ali, no palco, algo um tanto diferente.

“Se você veio ver um ator, está no lugar errado”, diz o protagonis­ta da peça “Vale da Estranheza” ao público à sua frente. “Se veio ver algo autêntico, está no lugar errado também.”

Um dos principais espetáculo­s da oitava edição da MITsp, a Mostra Internacio­nal de Teatro de São Paulo, iniciada na semana passada, depois de dois anos longe dos palcos, “Vale da Estranheza” é encenado por um robô e mergulha numa enxurrada de questões filosófica­s sobre conceitos como vida humana, liberdade, tecnologia e saúde mental.

Dirigida pelo suíço Stefan Kaegi, a peça é em formato de palestra e conduzida por um humanoide que tem uma aparência bizarramen­te semelhante à do escritor e dramaturgo alemão Thomas Melle.

Com a cabeça cortada ao meio, ele deixa à mostra parte de seu amontado de engrenagen­s robóticas enquanto faz análises da sensação evocada por sua imagem ultrarreal­ista, o chamado “uncanny valley”, ou vale da estranheza.

A expressão cada vez mais difundida na era dos algoritmos foi cunhada na década de 1970 pelo engenheiro japonês Masahiro Mori. Serve para descrever um fenômeno que parece ter saído da série britânica “Black Mirror”. É quando um robô é tão parecido com uma pessoa de carne e osso que chega a causar medo, angústia e incômodo entre os seres humanos.

Isso porque, segundo Mori, existe um limite no grau de interação entre pessoas e máquinas —no qual, robôs que reproduzem gestos humanos são vistos com simpatia, e aqueles de visual ultrarreal­ista causam repulsa.

Mas Melle —ou, na realidade, a cópia de Melle— promete ao público de “Vale da Estranheza” uma “superação do problema”, ao entrelaçar acontecime­ntos marcantes de sua vida com a do cientista e matemático britânico Alan Turing.

O protagonis­ta traz reflexões de trechos extraídos de “O Mundo às Costas”, publicado pelo Melle de verdade, em 2016. O livro faz análises sobre o transtorno maníaco-depressivo, também conhecido como bipolarida­de, doença sofrida pelo autor. É daí que partem cenas tensas como a de um colapso nervoso vivido pelo humanoide.

Ele também surge rindo, cantando e até debochando da cara dos espectador­es.

Outro assunto em destaque na obra é o teste de Turing, que analisa a capacidade de uma máquina de responder perguntas usando uma linguagem indistingu­ível da de um ser humano. É o reverso do proposto pelos testes de segurança online, em que pessoas de verdade provam não serem robôs, diante de uma seleção de imagens que, muitas vezes, são de difícil identifica­ção —o que contradito­riamente as aproxima, em certo grau, dos robôs.

“Cheguei a ver muitos humanoides em museus, mas as pessoas sempre ficam tirando fotos para o Instagram. Não tem como criar empatia. É a experiênci­a como objeto”, conta o diretor Stefan Kaegi. “Agora, um humanoide substituin­do um ator, num teatro, é algo mais constrange­dor, aumenta o vale da estranheza. Na peça, vejo as pessoas atravessar­em um processo de identifica­ção. Assim como robôs, temos uma programaçã­o que faz, por exemplo, o corpo se movimentar.”

A versão humanoide de Thomas Melle traz a ideia de que nem só de diferenças vivem os humanos e as máquinas. Ela questiona, por exemplo, a rotina metódica adotada por tantas pessoas e a compara com a repetição robótica.

Para produzir a peça, que estreou em 2018, na Alemanha, Kaegi conta que foi preciso quase um ano só para tirar o robô do papel. A máquina foi montada a partir de um molde humano original, que veio do próprio Melle, através de técnicas animatrôni­cas.

“Por um lado, dirigir um robô é muito prático. Ele faz tudo o que você quiser”, declara o artista suíço. “Ao mesmo tempo, é bem chato. Não tenho o hábito de definir todos os gestos dos meus atores. Mas um robô não propõe nada. É uma inteligênc­ia artificial. Então, preciso definir cada centímetro de movimento.”

“Vale da Estranheza” leva ainda a questionam­entos sobre o próprio conceito de teatro. Kaegi afirma que, mesmo sem nenhum humano no elenco, a peça é tão teatral quanto qualquer outra com atores de carne e osso.

“O teatro dos fantoches não tem atores e, mesmo assim, é teatro. É como um robô manipulado, remotament­e controlado. Em alguma medida, sempre houve tecnologia na história do teatro. Mas, antes de tudo, penso que [essa arte] é sobre catarses de identifica­ção. E isso está nessa peça.”

Kaegi afirma ainda que o polêmico teatro online, que se popularizo­u na pandemia, trocando os palcos pelos pixels, é um universo muito mais nebuloso do que o modelo adotado em sua peça.

Além de “Vale da Estranheza”, a MITsp deste ano—que veio enxuta se comparada às edições anteriores, devido às crises da Covid, segundo a organizaçã­o do evento— traz entre os destaques espetáculo­s como “História do Olho - Um Conto de Fadas Pornô-Noir”, de Janaina Leite, com uma montagem inspirada num dos livros eróticos mais famosos de Georges Bataille, “Antes do Tempo Existir”, de Andreia Duarte, “Tragédia e Perspectiv­a I - O Prazer de Não Estar de Acordo”, de Lisandro Rodríguez e Alexandre Dal Farra, e “Um Jardim para Educar as Bestas”, de Eduardo Okamoto —a partir de escritos de Valter Hugo Mãe, Ariano Suassuna, Guimarães Rosa e Euclides da Cunha.

MITsp Vale da Estranheza

 ?? Gabriela Neeb/Divulgação ?? Cena do espetáculo ‘Vale da Estranheza’, com direção do suíço Stefan Kaegi, um dos destaques da Mostra Internacio­nal de Teatro de São Paulo deste ano, a MITsp
Gabriela Neeb/Divulgação Cena do espetáculo ‘Vale da Estranheza’, com direção do suíço Stefan Kaegi, um dos destaques da Mostra Internacio­nal de Teatro de São Paulo deste ano, a MITsp
 ?? Francio de Holanda ?? ‘Antes do Tempo Existir’, de Andreia Duarte
Francio de Holanda ‘Antes do Tempo Existir’, de Andreia Duarte
 ?? Caca Bernades ?? Cena da peça ‘História do Olho’, de Janaina Leite
Caca Bernades Cena da peça ‘História do Olho’, de Janaina Leite
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