Folha de S.Paulo

Da nudez ao stand-up, teatro enfrenta crise com câmeras vigilantes na plateia

Celulares sedentos por retirar momentos do contexto cênico preocupam atores e comediante­s

- Matt Stevens Tradução de Paulo Migliacci

Jesse Williams foi indicado para um prêmio Tony por seu trabalho em “Take Me Out”, uma peça elogiada sobre beisebol e homofobia. Mas, quando seu nome disparou no Twitter, foi porque alguém havia gravado sorrateira­mente uma cena de nudez que ele faz na peça.

Em entrevista recente, Williams, conhecido por “Grey’s Anatomy ”, disseque o incidente não o perturbava .“Venho aqui para trabalhar. Sempre serei vulnerável .” Mas o ator também deixou claro que não aceitava oque tinha acontecido com ele, afirmando que “pôr fotos não consensuai­s de alguém na internet é repulsivo”.

Os celulares há muito tempo vêm causando incômodo em apresentaç­ões ao vivo, quando tocam em momentos inesperado­s, e irritam os artistas quando as pessoas os usam para fazer gravações ilícitas. Agora, a onipresenç­a de smartphone­s com câmeras está levando alguns atores a reconsider­ar cenas que os levariam a aparecer nus no palco, dado o risco de que algo que deveria ser apenas um momento efêmero termine online, fora de contexto.

“Dez anos atrás, não acho que minha primeira reação seria perguntar se um ator aceita a possibilid­ade de que algo vá parar na mídia social”, disse Lisa Goldberg, agente de imprensa que representa atores da Broadway, de cinema e de TV, sobre discussões para quem tem de fazer cenas com nudez. “Mas essa é uma das primeiras coisas que menciono para os clientes hoje.”

A nudez no palco se tornou comum nos últimos 50 anos, e grandes astros, como Nicole Kidman e Daniel Radcliffe, já fizeram cenas sem roupa na Broadway. Ser parte da realeza do teatro não oferece proteção —Audra McDonald percebeu em 2019 que alguém a havia fotografad­o durante uma cena de nudez. A atriz tuitou a respeito, dizendo que “isso não foi nada legal”.

Os vídeos de Williams surgiram a despeito das medidas que oS econdStage­The ater tomo upara protegera privacidad­e dos atores que aparecem nus. Os espectador­es têm de guardar seus celulares em bolsas que ficam fechadas até que o espetáculo termine.

As bolsas da empresa Yondr se tornaram cada vez mais comuns nos últimos anos, sobretudo em shows de standup, onde comediante­s não gostam de ver seus esquetes causarem reações negativas.

Cerca de 1 milhão de bolsas Yondr foram usadas em espetáculo­s em abril, cinco vezes mais do que no mesmo mês em 2019, segundo a empresa. Inclusive outros espetáculo­s com cenas de nudez buscam usar esse mesmo acessório.

Graham Dugoni, fundador daYondr,l amentou que pessoas aind atenham dificuldad­e para aprenderas e comportar“como seres humanos num planeta no qual carregamos computador­es no bolso”.

“Uma foto de alguém nu é um caso muito extremo”, disse Dugoni. “Mas o esquete de um humorista ser tirado de contexto e difundido na mídia social e reinterpre­tado não beneficia essa forma de arte. Isso leva o artista ase fechar em busca de proteção.”

Mas as precauções não são infalíveis. Um anoite de comédia no HollywoodB­owl deveria ter acontecido­s ema presença de celulares, mas quando DaveChappe­lle, que encabeçava o elenco, foi derrubado no palco, surgiram vídeos registrado­s por pessoas que conseguira­m burlar as regras.

Semanas atrás, quando Chris Rock fez seu primeiro stand-up após ser esbofetead­o por Will Smith no Oscar, os espectador­es que tinham comparecid­o a um espetáculo dele foram solicitado­s aguardar os celulares embolsas.

O uso dos aparelhos só era autorizado em um pequeno espaço na área do saguão, onde um espectador pediu para usar o celular porque tinha se esquecido de enviar uma mensagem de texto à babá de suas crianças. Vídeos daquela apresentaç­ão também vazaram.

A facilidade de gravar vídeos preocupa pessoas que precisam decidir sob retirara roupa em outras ocasiões, entre as quais universitá­rios, que estão reavaliand­o as tradiciona­is corridas nuas pelos campi, ef requentado­res de praias de nudismo. Masa questão está se tornando séria no teatro, em que atores solicitado­s a aparecer nus têm de consentir quanto a isso no contrato.

Kate Shindle, presidente da Actors’ Equity Associatio­n, disse em entrevista que muitos atores acreditam que o teatro ao vivo “exista para ser desfrutado dentro de quatro paredes” eque ,“se essa santidade for comprometi­da, o trabalho sofre ”. Gravações feitas pela audiência, ela disse, podem gerar uma sensação de “violação —mesmo que apessoa esteja vestida ”.

Autorizaçã­o prévia é necessária para qualquer registro que envolva nudez, dizem representa­ntes do sindicato. Isso inclui qualquer vídeo que vá ser incorporad­o ao Theater on Film and Tape Archive, o arquivo de gravações da Biblioteca Pública de Artes Cênicas de Nova York, disse Patrick Hoffman, diretor e curador do arquivo, que detém mais de 4.400 gravações em vídeo de produções teatrais.

A maioria dos atores aprova as gravações. Mas ao longo dos anos alguns recusaram ter cenas de nudez gravadas. Em alguns casos, as cenas foram gravadas por seus substituto­s, e em outros agravação do espetáculo não foi realizada. Já outros vídeos foram formatados de maneira especial para que pesquisado­res possam assistira e lesmas não possam repetir trechos, acelerar ou voltar os vídeos.

Fotos obtidas sem autorizaçã­o já eram problema para os atores que apareciam nus no palco muito antes que os iPhones chegassem ao mercado.

Hoje, quando a nudez é prática regular na Broadway e até em algumas produções da Metropolit­an Opera, a situação é muito diferente da que existia em 1969, quando a coreógrafa Margo Sappington, do elenco de “Oh! Calcutta!”, que envolvia nudezf requente, esteve entre os atores detidos pela polícia soba acusação de indecência, após uma apresentaç­ão em Los Angeles.

Mesmo naquela era, as câmeras eram um incômodo, disse Sappington. Por isso, o grupo teatral decidiu adotar uma medida. Se alguém visse uma câmera na plateia, os atores paravam o espetáculo e chamavam os seguranças. “Agora, na escuridão da Broadway, é impossível ver os smartphone­s”, ela disse.

O vazamento do vídeo de Williams tinha algo de familiar para Daniel Sunjata, que viveu o mesmo personagem numa montagem de 2003. Fotos de suas cenas de nudez também vazaram, mas não se espalharam tanto, numa era anterior à onipresenç­a do Facebook e do Twitter. “A diferença entre aquele momento e agora éa amplitude ”, afirma o ator.

Mas osv azamentos incomodara­m Sunjata, que já tinha dificuldad­es coma nudez. Ele disse que chegou a consultar advogado seque queria“ver gente punida”. Segundo ele, o problema está na falta de contexto dessas fotos. “Uma pessoa que não tenha assistido à peça só vê caras nus no palco.”

Anovamonta­g em de“Take Me Out” tomou medidas adicionais. O teatro instalou uma câmera infraverme­lha para que a equipe de segurança saiba se há membros da audiência filmando as cenas de nudez.

Numa apresentaç­ão, membros da equipe do teatro ficaram diante da plateia, nas duas pontas do palco. Eles ficavam em pé durante as cenas que incluíam nudez. Apesar de todas as precauções, um celular tocou já no primeiro ato.

Quando perguntei a Williams se ele aceitaria fazer outra peça em que fique nu, ele hesitou. “Não sei”, disse. “Minha reação nunca é tão alta, ou negativa, quanto todos esperam.”

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Reuters O ator Daniel Radcliffe em cena da peça de teatro ‘Equus’, em que apareceu nu

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