Calcinha falante é estrela de HQ para os fortes
‘Rosie na Floresta’, do britânico Nathan Cowdry, arrisca piadas com garota durona e cãozinho forçado a traficar drogas
Livros
Rosie na Floresta
★★★★☆
Autor: Nathan Cowdry. Trad.: Cris Siqueira. Ed.: Veneta. R$ 79,90 (136 págs.)
Quando o marginal é gourmetizado, fica difícil identificar o que desafia os limites da convenção e o que só recicla angústias alheias para fazer sucesso. Daí, o que uma calcinha falante e assassina, um cão obrigado a engolir cocaína e uma garota sempre seminua trazem de significativo para além de uma catarse adolescente?
“Rosie na Floresta” não responde a essa dúvida, mas dá algumas pistas. A primeira graphic novel do britânico Nathan Cowdry confronta o leitor, do início ao fim, em cerca de 130 páginas, com um mal-estar em que o fofo e o repulsivo convivem numa história simplória —mas, acima de tudo, bastante divertida.
Por meio do flashback do cãozinho Denton —encontrado amarrado e esfaqueado às margens de um rio amazônico por um casal de missionários que acabam de perder a virgindade—, conhecemos a misteriosa e apática Rosie, uma jovem durona que ganha a vida traficando drogas.
Além da fidelidade canina, Denton nutre uma intensa atração sexual e platônica por ela, ainda que a menina o obrigue a embarcar num avião com quilos de cocaína no estômago. O animal apaixonado acabará sendo vítima do surrealista Zé Calcinha — uma estrela à parte, que tem pernas e braços, fala, monta um plano maquiavélico e ainda nega o Holocausto.
O título original, “Crash Site” —ou zona de impacto— se refere à queda do avião com as personagens na selva amazônica, após a dupla partir de Manaus, e que sela o destino delas.
Já seria uma história estranha por si, mas Cowdry planta seu diabinho nos detalhes. Influenciado pelos mangás e pelas HQs infantis, suas linhas são limpas, os olhos humanos tem cílios grossos e um brilho irreal. As cores retomam o estilo de pintura em celuloide das animações analógicas. Seus quadros são regulares, com poucas ousadias.
Leitores das últimas HQs publicadas pela editora Veneta, que traz a obra ao Brasil, poderão se lembrar da geleia geral de Gustavo Piqueira em “Domex”, e ainda de Simon Hanselmann —que assina um elogio na contracapa de “Rosie na Floresta” e tem publicados por aqui os impecáveis “Zona de Crise” e “Mau Comportamento”. São referências distintas, mas que ajudam a ler Cowdry.
Do primeiro, há o esforço de investigação da linguagem que Piqueira, artista gráfico prolífico, faz ao reunir imagens intrusas. Destas, a de Henry Darger é a que mais parece representada aqui, com as pinturas de garotas vitorianas hermafroditas em painéis que perturbam pelos decalques distorcidos.
Já com Hanselmann há um diálogo forte não só com seu notável niilismo e com sua “comédia chapada”, mas com seu mundo que mescla realidade e desenho animado — vide os protagonistas, o casal Megg e Mogg (uma bruxa verde vestida a caráter e um gato preto), inspirados na série infantil “Meg and Mog”.
O trabalho de Hanselmann é superior por todo o envolvimento emocional que estabelece. Mas Cowdry compartilha uma qualidade ao fazer um mundo habitado por animais falantes e objetos animados para explorar um mundo de imagens impostas pela civilização dominadora (essa que Denton e Rosie representam, como fiéis espectadores do reality show Britain’s Got Talent”e coisas do gênero).
Se nas aventuras de Tintim (outra saga sobre um jornalista aventureiro e seu cachorro, muitas vezes em países “subdesenvolvidos”) as linhas do mestre belga Hergé também produziam desenhos racistas, aqui, o autor britânico mantém a clareza formal sem enveredar pelo politicamente correto, mas pelo mau gosto herdado do colonialismo.
Aos impressionáveis, cautela. Há cenas em que Denton se masturba com uma revista em que Apu —o personagem indiano estereotipado dos “Simpsons”— é assediado por “garotas politizadas”, até que o cãozinho ejacula todo o seu “privilégio branco”.
Ainda há momentos em que Rosie e algumas amigas se bronzeiam nuas numa praia comum, descem a porrada num salva-vidas, e o animal fica excitado ao ver uma garota urinando atrás de uma pedra.
E se não há um pingo de erotismo pelo álbum (com os desenhos infantilizados e sem volume), temos um ótimo senso de humor quando o autor censura vaginas ou abusa de clichês até o nonsense.
Em paralelo, Cowdry faz referências às apropriações culturais e à banalização da morte e do sexo que as HQs alternativas souberam cultivar de forma autorreflexiva ou realista —vide Charles Burns ou Chester Brown.
Não é à toa que da abertura com missionários na Amazônia, num barco digno de “Fitzcarraldo”, a HQ salta para episódios de uma Guerra do Vietnã ora onírica, —na visão de Denton—, ora digital —no videogame jogado por Rose.
Ao fim, é difícil definir qual o sentido político desse “Tintim” contemporâneo e, ainda que não seja nenhum Joseph Conrad, Cowdry faz o que pode para levar o leitor ao seu coração das trevas particular.