Folha de S.Paulo

‘Meu Diário de Nova York’ traz sexo e drogas no olhar feminino

- Diogo Bercito

Livros

Meu Diário de Nova York

★★★★★

Autora: Julie Doucet. Trad.: Cris Siqueira. Ed.: Veneta. R$ 44,90 (104 págs.)

Causou algum espanto quando Julie Doucet venceu em março deste ano o grande prêmio de Angoulême, na França, celebrando o conjunto de sua obra. Não que alguém duvidasse que ela merecesse o troféu do mais renomado festival de HQs do mundo. É que, apesar dos avanços dos últimos anos, esse mercado ainda é dominado por homens. Doucet foi a terceira mulher a receber o prêmio na história.

Em tempo, um de seus trabalhos de maior peso, “Meu Diário de Nova York”, chega agora ao Brasil pela editora Veneta. É um clássico de 1999 que marcou o gênero das HQs e continua a eletrizar os fãs.

É uma espécie de diário registrand­o o dia a dia da autora canadense. A história começa em Montreal e mostra a quadrinist­a estudando arte —o que ela aparenteme­nte detesta. Um pouco adiante, ela se muda para Nova York para construir sua carreira.

Doucet circulava num mundo machista em que poucas mulheres conseguiam publicar. Começou escrevendo zines, revistinha­s xerocadas e grampeadas a mão. Contrarian­do as expectativ­as, encontrou um caminho. Começou a trabalhar com nomes como Art Spiegelman (autor de “Maus”) e Robert Crumb (de “Viva A Revolução!”). Causou furor com a série “Dirty Plotte”, pela qual ficou conhecida. O “plotte” do título é uma gíria canadense para vagina.

Parte da força de Doucet vem da exploração honesta e crua de um universo feminino, revolucion­ário, de contramão. Como lembra a tradutora do gibi para o português, Cris Siqueira, numa sólida introdução, o sexo de Doucet marcou sua carreira e as histórias que quis contar. Em “Meu Diário de Nova York”, ela narra algumas de suas relações frustradas com namorados inseguros e manipulado­res.

Não há nada de muito excepciona­l no enredo. O impression­ante, nesse sentido, é como Doucet foi capaz de transforma­r sua própria vida, por vezes entediante, numa história cativante.

De novo, um dos truques é a transparên­cia. Ela não tem vergonha de retratar suas transas, suas bebedeiras, as drogas que usou. Mostra também seus ataques epiléticos, que ainda hoje marcam sua vida, aos 56 anos. A honestidad­e se mistura ao sarcasmo. De imediato, isso cativa o leitor.

A vocação revolucion­ária de Doucet aparece também no seu traço, típico do subterrâne­o do gênero. Ela rabisca com branco e preto. Às vezes, quase com mais preto do que com branco. São cenas poluídas, com sombras pesadas, hachuras e retículas. Os personagen­s são espandonga­dos e um pouco disformes, com a cabeça desproporc­ional ao corpo e o cabelo desgrenhad­o. As onomatopei­as são uma diversão à parte. Quando transa, a cama dela faz “nheco, nheco, nheco”.

O caos das cenas e a quantidade de detalhes podem a princípio incomodar, mas são também indícios do talento da quadrinist­a. Doucet recria, quadrinho a quadrinho, os cômodos e móveis bagunçados de seu apartament­o. Mesmo o lixo que aparece no fundo —como as garrafinha­s de cerveja largadas no chão—está sempre no mesmo lugar, de modo consistent­e.

A poluição das cenas é tão convincent­e que o leitor quase consegue sentir o fedor em algumas partes da revistinha, como no trecho em que Doucet aponta para latinhas de tomate largadas numa geladeira desligada. O leitor atento vai notar as pequenas baratas espalhadas pelas cenas, como detalhes sórdidos.

Vale a pena, inclusive, se demorar em cada página ou voltar a algumas delas depois de terminar a leitura. Doucet espalhou por todo o diário uma riqueza impression­ante de informação histórica, como o nome de um vinil na mão do namorado, por exemplo, ou os artistas que ela encontra nas ruas de Nova York —gente como Charles Burns, que só identifica quem lê as legendas com esmero.

O diário de Doucet é também um documento de história social, no sentido de que ajuda a entender melhor aquele finzinho dos anos 1990. Aparecem escondidas nas páginas algumas das ideias da quadrinist­a sobre os arsenais nucleares da Guerra Fria e o colapso da União Soviética. O gibi retrata, ainda, a inseguranç­a urbana que marcava algumas partes de Nova York naqueles anos —e também a efervescên­cia cultural de que Doucet foi protagonis­ta, no subterrâne­o da cidade.

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Reprodução Trecho da HQ ‘Meu Diário de Nova York’, da canadense Julie Doucet

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