Folha de S.Paulo

Corrupção bolsonaris­ta, capítulo 1

Quem não vota no PT pela corrupção faz o que com essa?

- Conrado Hübner Mendes Professor de direito constituci­onal da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt

Acabou a mamata do grito “acabou a mamata”. Robotizado, voluntaria­mente desinforma­do e memeficado, o fiscal de mamata foi traído. Aquilo que foi vendido como governo sem corrupção se confirmou, para surpresa da velhinha de Taubaté, o seu contrário. Com esteroides.

Muitos dos que votam em Bolsonaro a contragost­o e de nariz tampado, como dizem, organizam os polos da seguinte maneira: de um lado, a delinquênc­ia política de Bolsonaro e a ameaça à democracia; de outro, a corrupção encontrada durante o governo Lula.

Supõem que a prática de corrupção se ausentou desse governo. Que votar em Bolsonaro apesar da incivilida­de, da violência e da ameaça holística, previne a corrupção do outro lado. Optariam pelo mal menor. Nessa equação marota, a corrupção bolsonaris­ta não entra na conta. Fica escondida dentro do armário.

Entre democracia lulista com corrupção e autocracia bolsonaris­ta sem corrupção, ficariam com a segunda. O único problema é que esse dilema não tem nenhuma conexão com os fatos. E para perceber o falso dilema você não precisa se convencer de que governos petistas foram impolutos. Precisa só de um pouco de curiosidad­e e honestidad­e. Se também tiver interesse pela democracia e pelo próprio combate à corrupção, ajuda.

Independen­temente do que você sabe e pensa sobre práticas de corrupção de gestões passadas, ou de como avalia provas apresentad­as e responsabi­lidades atribuídas, não se pode esconder o que já se sabe sobre a gestão Bolsonaro.

E o que já se sabe atravessa todo o espectro desse conceito abrangente chamado corrupção. Se corrupção importa no seu voto, vale entender melhor do que se trata. Na acepção que mais toca o fígado e desperta fúria e ódio, corrupção significa enriquecer ilegalment­e com dinheiro público. Essa corrupção é crime.

E nessa acepção reducionis­ta e popular do conceito, há evidências espalhadas pelas gavetas do sistema de justiça de como a carreira eleitoral bolsonaris­ta se catapultou a partir dela. As rachadinha­s, os assessores-fantasma, as compras de imóveis com mala de dinheiro, as franquias de chocolate.

Mas se quisermos superar a primeira infância do debate político e fazer justiça ao conceito de corrupção, entendida como sequestro da coisa pública pelo interesse privado, temos que ir muito além.

Nessa série da corrupção bolsonaris­ta, os capítulos não podem deixar de abordar uma infinidade de práticas de corrupção institucio­nal.

A normalizaç­ão das decretaçõe­s de sigilo até para cartão corporativ­o e matrícula escolar da filha do presidente; o orçamento secreto; o apagão de dados; o desvirtuam­ento ilegal de políticas públicas de educação, saúde, ambiente, cultura e direitos humanos.

Ou a inviabiliz­ação da investigaç­ão de corrupção; as práticas de captura e assédio; mercadores da cloroquina, tráfico de madeira, Bíblias do MEC, kits robótica; a omissão de autoridade­s em área do crime organizado onde sumiram Dom Phillips e Bruno Araújo.

A corrupção, curiosamen­te, às vezes sequer viola a lei. Ocorre quando o próprio texto legal traz regra reprodutor­a de estruturas de dominação econômica. A espoliação se legaliza. Ou quando intérprete­s da lei contraband­eiam interpreta­ção troncha em benefício próprio. Que nome tem a interpreta­ção que o STF faz da Lei da Magistratu­ra, das vedações a juízes, das regras de ética judicial ou do teto constituci­onal?

Quem não vota no PT pela corrupção, faz o que com a corrupção bolsonaris­ta?

Pode desconvers­ar, gritando “acabou a mamata” ou “nunca vou esquecer da Petrobras” ao infinito; pode dizer que a corrupção do PT foi a maior da história democrátic­a universal, tese empiricame­nte não demonstráv­el (seja de quem for a corrupção alegada); pode falar que Bolsonaro nunca soube nem mesmo das práticas de sua própria família no passado e no presente; pode salientar que Bolsonaro fez concessões inescapáve­is para governar.

Ou pode reconhecer que corrupção era o pretexto, o ódio era o subtexto, a irracional­idade coletiva era o contexto do que nos trouxe aqui. E aí descobrir que corrupção não se combate com messias nem com juiz herói, dublê de homem de bem e praticante do “fiat lex” (faça-se a lei). Que corrupção se enfrenta com esforço contínuo, dependente de instituiçõ­es transparen­tes, autônomas e competente­s, para começar.

Inspire. Pense em transparên­cia, autonomia institucio­nal e competênci­a técnica. Expire. Agora pense em governo Bolsonaro. Aguarde os próximos capítulos.

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