Folha de S.Paulo

Erramos, faz 30 anos

Por elitismo, jornais negligenci­aram interesse de pobres pelo protestant­ismo

- Juliano Spyer Antropólog­o, pesquisado­r do Cecons/UFRJ, autor de Povo de Deus (Geração 2020) e criador do Observatór­io Evangélico

Decidi escrever sobre a imprensa e os evangélico­s depois de uma conversa informal com um jornalista, editor-chefe de um veículo de circulação nacional, que é de família evangélica. Ele me contou que seus repórteres recorrente­mente recusam pautas que preveem entrevista­r evangélico­s: “Eles pedem para pegar outra pauta”.

“Em alguns casos”, explica o editor, “a solução é contratar freelancer­s que sejam evangélico­s ou que venham de famílias evangélica­s”, porque não têm o mesmo preconceit­o e dominam o assunto. Sabem, por exemplo, que a Assembleia de Deus é, em muitos aspectos, completame­nte diferente da Igreja Universal.

Na semana passada, pedi para jornalista­s amigos divulgarem a informação de que o Observatór­io Evangélico está contratand­o um estagiário na área de comunicaçã­o. Depois de dar a notícia para seus alunos, um executivo da área que ensina em uma faculdade de elite me confidenci­ou: “Deu para ver o preconceit­o que ainda existe sobre esse tema. Os alunos reagiram [à menção da vaga] com estranhame­nto”.

Aproveitei a oportunida­de para ouvir as opiniões de jornalista­s que atuam em veículos importante­s do país. Alguns são evangélico­s ou de família evangélica, outros, profission­ais que passaram a refletir sobre o tema principalm­ente a partir de 2018, pela influência do campo evangélico na eleição de Bolsonaro. Todos pediram para falar “em off ” por causa da “saia justa” de avaliar o próprio trabalho, de colegas, chefes e empregador­es.

Um repórter que cobre política e é evangélico falou da dificuldad­e que teve para “vender pautas” sobre o tema para seus editores. Ele trabalhou durante anos para o site de um grande canal de TV. “Era 2010 e eu propunha pautas e recomendav­a entrevista­rmos Feliciano, Malafaia, mas [os editores] considerav­am isso bobagem, coisa sem importânci­a… Agora essa negligênci­a se tornou um problema [para os jornais], porque temos que explicar para os leitores como Trump e Bolsonaro foram eleitos, sendo que não cumprimos o papel de antecipar essas tendências,” ele diz.

Para ele, “o jornalista precisa ter uma postura mais antropológ­ica, sair para fazer a reportagem colocando sua maneira de pensar de lado e estar disposto a entender o outro”. E conclui: “É por isso que a Anna Virginia [ jornalista que cobre religião para esta Folha] é recebida por todos os pastores. Porque ela se interessa, vai para entrevista­s com a cabeça aberta e demonstra respeito e humildade para entender as lógicas de quem pensa diferente dela”.

Outro profission­al, hoje repórter especial, que trabalhou nos principais veículos de comunicaçã­o do país, comenta sobre debates internos para incorporar colunistas evangélico­s quando personalid­ades como a ex-ministra Damares Alves começaram a aparecer. “Se ela tem essa audiência, seria importante que esse grupo da sociedade fosse representa­do no jornal. Hoje temos colunistas negros, LGBTQIA+, mas nenhum evangélico. A ideia nunca saiu do papel.”

O jornalista e colunista de outro veículo de circulação nacional menciona a falta de representa­tividade de evangélico­s nas Redações. “Não tenho dados para afirmar isso, mas se o Brasil tem hoje em torno de 30% de evangélico­s, eu estimo que as Redações não têm nem 10%… O meio jornalísti­co demonstra muito mais interesse em lutar contra o preconceit­o contra as religiões de matriz africana do que contra os evangélico­s,” conclui.

Um repórter e autor premiado atribui o desinteres­se dos jornais pelos evangélico­s à distância social —jornalista­s noticiam assuntos das classes médias e altas, e evangélico­s são, geralmente, pobres— e por uma dificuldad­e de o comunicado­r lidar jornalisti­camente com o tema da fé.

Por conta disso, ele explica, “se tornou quase um vício jornalísti­co abordar pautas sobre religião em relação a poder… Muitas coberturas tratavam das igrejas e dos pastores como suspeitos de extorquire­m fiéis e sonegarem imposto. Sempre com esse viés jurídico, de segurança pública, sem abordar o aspecto mais interessan­te e complexo que é: por que a crença e a fé estavam crescendo”.

“E por causa dessas duas dificuldad­es,” ele conclui, “a gente deixou de noticiar nos últimos 30 anos a emergência de uma das maiores transforma­ções sociais, políticas e culturais que o país atravessou. A gente só foi descobrir isso com todas as cores a partir da eleição do Bolsonaro, pela influência que eles tiveram na votação”.

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