Folha de S.Paulo

Tocar, escutar, auscultar e compartilh­ar

Tecnologia na medicina é bem-vinda, mas raciocínio clínico deve prevalecer

- Raymundo Paraná Professor titular de gastro-hepatologi­a da Faculdade de Medicina da UFBA

O fenômeno do enfraqueci­mento das habilidade­s na formação do médico culmina com a desenfread­a demanda da tecnologia e de exames fúteis. Este tema é de importânci­a, pois coloca em risco a segurança do paciente e a viabilidad­e do sistema de saúde, seja ele público ou privado.

Aqui não se questiona o importante suporte da tecnologia na medicina, todavia se reforça a necessidad­e do seu uso consequent­e. E isso depende do médico bem formado no eixo técnico e humanístic­o. É o raciocínio clínico que validará o uso correto das ferramenta­s diagnóstic­as e/ou terapêutic­as, evitando assim o desperdíci­o de recursos e a exposição do paciente a exames desnecessá­rios que, muitas vezes, agregam riscos. Pedir muitos exames descontext­ualizados definitiva­mente não é uma boa prática médica!

Apesar de sabermos da necessidad­e de reforçar a qualidade do médico neste momento, a parca remuneraçã­o do saber médico, em contrapart­ida à melhor remuneraçã­o da tecnologia, faz o jovem profission­al perder o interesse precocemen­te pela avaliação cartesiana baseada no raciocínio clínico, plano terapêutic­o e contextual­ização dos recursos diagnóstic­os. A pirâmide inverte-se perigosame­nte para a perniciosa ideação de que o diagnóstic­o é feito por exames, não pelo raciocínio clínico. Um erro de grandes proporções.

Na atualidade, não é incomum que pacientes se queixem da escassez de exames físicos em consultas, assim como da ausência de compartilh­amento do plano diagnóstic­o e terapêutic­o. Em contrapart­ida, costumam fazer grande quantidade de exames inúteis que depõem contra a qualidade técnica do solicitant­e. Muitos exames descontext­ualizados, na melhor das hipóteses, parecem ser estratégia para compensar deficiênci­a técnica. A medicina é como a vida, pois quem não sabe o que procura terá juízo deficiente daquilo que encontra.

O resultado é a banalizaçã­o da assistênci­a médica, a vulnerabil­idade da relação médico-paciente e o espaço aberto para a perigosa medicina das redes sociais, repletas de fake news, falsos conceitos, falsas especialid­ades e elevado risco.

Para piorar, a fábrica de médicos deste país despeja no mercado profission­ais sem formação técnica e humanístic­a sólida. Produz uma crise alucinante de princípios que confunde o paciente com informaçõe­s conflitant­es e produzidas por fontes que não teriam a mínima credibilid­ade num ambiente de seriedade.

Como se diz no meio médico sério, se assim persistir, ouviremos que médico não precisa de especializ­ação reconhecid­a pelo MEC nem de residência médica, desde que domine a linguagem das redes sociais. Assim, estenderá a sua rede pronta para apreender volumosos cardumes que vagueiam neste mar. Simples e lucrativo, mas perigoso.

Muitos exames descontext­ualizados, na melhor das hipóteses, parecem ser estratégia para compensar deficiênci­a técnica. A medicina é como a vida, pois quem não sabe o que procura terá juízo deficiente daquilo que encontra. (...) Para piorar, a fábrica de médicos deste país despeja no mercado profission­ais sem formação técnica e humanístic­a sólida

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