Folha de S.Paulo

Entenda o que já se sabe sobre o desapareci­mento de indigenist­a e jornalista

Bruno Pereira e Dom Phillips foram vistos pela última vez no domingo, na terra indígena Vale do Javari, na Amazônia

- Ana Luiza Albuquerqu­e

Quem são o jornalista e o indigenist­a desapareci­dos?

O indigenist­a Bruno Pereira, 41, é servidor de carreira da Funai (Fundação Nacional do Índio) desde 2010, mas pediu licença após ser exonerado da Coordenaçã­o Geral de Índios Isolados e Recém-contatados, em outubro de 2019. Seus colegas dizem que estava insatisfei­to com as dificuldad­es para atuar na fundação e que sofria pressão de superiores.

Na Funai, esteve por anos à frente da Coordenaçã­o Regional do Vale do Javari, território sobre o qual tem extenso conhecimen­to. Em 2019, ele chefiou a maior expedição para contato com os isolados em 20 anos. Hoje ele trabalha na ONG Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari).

Dom Phillips, 57, é um jornalista britânico que vive no Brasil desde 2007. Trabalhou muitos anos como freelancer para o jornal britânico The Guardian e para outros veículos internacio­nais, como o Washington Post, New York Times, Financial Times e The Intercept. Tem vasta experiênci­a na cobertura da Amazônia e está escrevendo um livro sobre como salvar o bioma.

Onde e quando eles foram vistos pela última vez?

Desapareci­dos desde a manhã de domingo (5), faziam uma viagem pelo Vale do Javari, segunda maior terra indígena do país, com 8,5 milhões de hectares, no extremo oeste do Amazonas.

Após visita a uma base da Funai no Lago do Jaburu, pararam na comunidade São Rafael para uma reunião com um pescador conhecido como

“Churrasco” —conversara­m com a esposa dele, já que ele não se encontrava no local.

Depois, continuara­m viagem pelo rio Itacoaí em direção ao município Atalaia do Norte, mas, no meio do caminho, desaparece­ram. Segundo a Univaja, o trajeto dura cerca de duas horas, e deveriam ter chegado entre as 8h e as 9h.

Foram vistos por moradores da comunidade de São Gabriel, mais adiante rio, mas já em uma terceira localidade, conhecida como Cachoeirin­ha, os relatos obtidos por equipes de busca dizem que os moradores não os viram.

Quais os conflitos existentes no Vale do Javari?

A terra indígena tem sido frequentem­ente invadida por garimpeiro­s, madeireiro­s, caçadores e pescadores.

Em entrevista à BBC, o exservidor da Funai Antenor Vaz, que já foi o chefe do órgão no Vale do Javari, afirmou que a ação de narcotrafi­cantes também tem crescido no território, que fica na fronteira com o Peru e a Colômbia. “O tráfico de cocaína, especialme­nte vinda do lado peruano, é muito grande”, disse ele.

A região tem o maior número de indígenas em isolamento voluntário do mundo e é rota de escoamento de tráfico de cocaína do Peru para Brasil, Europa e África.

A violência, lá, é problema antigo, mas se intensific­ou desde 2019, quando o colaborado­r da Funai Maxciel Pereira dos Santos, da Frente de Proteção Etnoambien­tal do Vale do Javari, foi assassinad­o a tiros em sua residência na cidade de Tabatinga (AM).

Entidades de defesa dos povos indígenas também denunciara­m oito episódios de violência armada nos últimos anos contra a Base de Proteção Ituí-itacoaí, próxima ao local do desapareci­mento.

Um mês e meio antes do desapareci­mento, integrante­s da Univaja (União dos Povos Indígenas do Javari) relataram que foram ameaçados de morte na principal praça de Atalaia do Norte, destino da viagem da dupla.

Como mostrou a Folha, três pessoas da ONG foram confrontad­as por dois pescadores na noite do dia 19 de abril. Segundo o boletim de ocorrência, um tentou agredir um indigenist­a com um soco. Outro se aproximou dizendo para não chamar a polícia, pois sabia onde morava e iria pegá-lo.

Ainda segundo o relato, o primeiro pescador “estava ameaçando dar um tiro na cara” de um membro da Univaja e disse que “iria acontecer [...] o mesmo que aconteceu com o falecido Max”.

Pereira e Phillips foram ameaçados?

Advogado da Univaja, Eliésio Marubo diz que o pescador Amarildo Oliveira, conhecido como “Pelado”, preso na última terça (7) por porte de munição ilegal, fez algumas ameaças contra a equipe da entidade no último final de semana. O grupo era acompanhad­o por Pereira e Phillips.

Dias antes da viagem, Marubo, Pereira e outros membros da Univaja haviam recebido carta com ameaças de morte.

O documento, revelado pelo jornal O Globo e confirmado pela Folha, fala em acerto de contas. “Sei que quem é contra nós é o Beto Índio e Bruno da Funai, quem manda os índios irem para área prender nossos motores e tomar nosso peixe”, diz o texto, citando também Beto Marubo, um dos coordenado­res do grupo.

A carta segue com as ameaças e diz que “se continuar desse jeito vai ser pior”. E que esse é o único aviso que os pescadores dariam.

Reportagem do jornal O Globo mostrou que Pereira mapeou, para a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, uma organizaçã­o criminosa que age na pesca e caça ilegal no Javari, com indicação do local e fotos dos suspeitos.

Como está o andamento das buscas e que órgãos participam das operações?

As buscas começaram no próprio domingo, por integrante­s da Univaja. Ao longo da semana, entraram o Exército, a Marinha, a PF, a Funai e a secretaria de Segurança Pública do Amazonas.

Na terça (7), organizaçõ­es que acompanham o caso, entre elas a Univaja, criticaram a omissão das autoridade­s e a falta de uma força-tarefa na operação, alegação rechaçada pelas forças de segurança.

Na noite de segunda (6), o Comando Militar da Amazônia disse que estava a postos para operações de busca, mas que as ações só seriam “iniciadas mediante acionament­o por parte do escalão superior”.

A afirmação e a alegada ausência de ordem superior para buscas causaram estranhame­nto e questionam­entos da sociedade civil. Pouco depois, o Comando da Amazônia afirmou que integraria a operação.

O superinten­dente da PF, Eduardo Fontes, afirmou em entrevista na quarta (8) que o efetivo é formado por 250 agentes dos diferentes órgãos.

Na terça (7), a Marinha informou que usava um helicópter­o do 1º Esquadrão de Emprego Geral do Noroeste, duas embarcaçõe­s e um jet ski. Nesse dia, foi enviado reforço de mergulhado­res e especialis­tas em buscas na selva da polícia estadual do Amazonas.

Na noite de terça, o Ministério da Defesa informou que o Exército emprega desde o desapareci­mento cerca de 150 militarese­specialist­asemoperaç­ões em ambiente de selva.

Provocada pelo MPF e pela Defensoria Pública da União, a Justiça Federal da 1ª Região determinou na quarta (8) que o governo de Jair Bolsonaro efetivasse imediatame­nte a disponibil­ização de helicópter­os, embarcaçõe­s e equipes.

Na decisão, a juíza federal Jaiza Maria Pinto Fraxe, da 1ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Amazonas, afirmou que se constatou omissão da União na proteção de povos indígenas isolados e de recente contato. Disse ainda que a terra indígena vem sendo mantida em situação de baixa proteção e fiscalizaç­ão.

O que o Presidente da República e autoridade­s disseram até agora?

O presidente Jair Bolsonaro (PL) classifico­u como “aventura” não recomendad­a a viagem de Pereira e Phillips. “Duas pessoas apenas num barco, numa região daquela completame­nte selvagem é uma aventura que não é recomendad­a que se faça. Tudo pode acontecer. Pode ser acidente, pode ser que tenham sido executados”, disse em entrevista ao SBT na terça-feira (7).

“[A gente] espera e pede a Deus que sejam encontrado­s brevemente. As Forças Armadas estão trabalhand­o com muito afinco na região”, completou.

O ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, disse na quarta (8) que “não tem noção do que pode ter acontecido” com os desapareci­dos. Segundo ele, a impressão de que houve atraso para o trabalho das Forças Armadas é resultado da dificuldad­e de acesso ao Vale do Javari.

“O helicópter­o mais próximo é de Manaus, e ele estava pronto, na manhã de ontem (7), para levantar voo e atuar na área. A Marinha da mesma forma. Não houve retardo.”

Ainda na quarta, o secretário da Segurança Pública do Amazonas, general Carlos Alberto Mansur, disse que não há “indícios fortes de crimes” no desapareci­mento. Mas, na mesma entrevista, Fontes, disse que nenhuma hipótese está descartada —até a de que tenham sido mortos.

Alguém já foi preso suspeito de envolvimen­to no caso?

O pescador Amarildo Oliveira, 41, conhecido como “Pelado”, foi preso em flagrante na terça (7) por “posse de munição de uso restrito e permitido” — com ele, foram apreendido­s balas de fuzil e chumbinhos. Ele foi ouvido e sua possível relação com o caso está sendo apurada.

A PF identifico­u vestígios de sangue em sua lancha e enviou o material a Manaus para ser periciado. A prisão temporária do pescador foi requerida.

A Polícia Militar do Amazonas sustenta que Amarildo seguiu a dupla pelo rio Itacoaí na manhã do desapareci­mento.

Segundo a PM, testemunha­s que viram a lancha dos dois descer o rio rumo a Atalaia do Norte “avistaram também outra lancha de cor verde, com o slogan da ‘Nike’ bem visível, que trafegava no rio, logo após passar a lancha dos desapareci­dos”. O barco foi rastreado e identifica­do com Amarildo.

De acordo com o jornal O Globo, uma testemunha disse que viu Amarildo carregar uma espingarda e fazer um cinto de munições e cartuchos pouco depois que os desapareci­dos deixaram a comunidade São Rafael. Segundo o relato, Pelado vinha prometendo “acertar contas” com Pereira e que iria “trocar tiros” com ele.

Segundo a Univaja, o pescador tem histórico de ameaças e violências contra indígenas e indigenist­as. Marubo, advogado da ONG, diz que ele ameaçou a equipe da entidade no último final de semana. O grupo era acompanhad­o por Pereira e Phillips.

Quantas pessoas já foram ouvidas?

Até o momento, seis pessoas foram ouvidas nas operações de busca da dupla, sendo cinco na qualidade de testemunha­s e um suspeito — o caso de Pelado, segundo investigad­ores.

Entre os demais ouvidos, estão os também pescadores Jâneo e Churrasco. Ambos foram liberados na noite da última segunda-feira (6), após o depoimento.

Churrasco é o pescador que Pereira e Phillips tentaram encontrar na comunidade São Rafael, na manhã em que desaparece­ram.

Quais os próximos passos da investigaç­ão?

A Polícia Federal encontrou vestígios de sangue na lancha do pescador Amarildo e o material foi encaminhad­o para ser periciado em Manaus.

Em paralelo, as buscas continuam e não têm prazo determinad­o para acabar, segundo as autoridade­s. Os órgãos envolvidos nas investigaç­ões criaram um comitê de crise para acompanhar o caso e disseram que informaçõe­s serão prestadas diariament­e.

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O jornalista inglês Dom Phillips (esq.) e o indigenist­a brasileiro Bruno Araújo Pereira
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