Folha de S.Paulo

A tragédia e seus muitos sócios

Estar ao lado do ocupante do Planalto é jogar a favor da fome, da doença e da morte

- Silvio Almeida Advogado, professor visitante da Universida­de de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama

Ao comentar reportagem sobre o avanço da fome no país, a jornalista Natuza Nery, da Globonews, usou expressão que muito nos auxilia a compreende­r o tamanho do buraco em que o país está enfiado. Natuza se referiu às autoridade­s que, diante da crise, em tendo o poder-dever de tomar providênci­as optam por se omitir como “sócios da tragédia”.

Ela não se referia tão somente ao presidente da república ou ao ministro da economia, Paulo Guedes, que não podem ser acusados apenas de omissão, pois, mais do que omissos, agiram ativamente para afogar o Brasil em sangue e lágrimas.

A jornalista se referia aos congressis­tas —especialme­nte aos presidente­s da câmara e do Senado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco— mas também aos empresário­s que um pouco antes aplaudiram efusivamen­te mais uma sessão de falas ofensivas, golpistas e tresloucad­as do ocupante-em-chefe, Jair Bolsonaro.

Mas quero acrescenta­r aqui mais um exemplo deste arranjo societário em torno do ódio e do sofrimento dos pobres e que, desafortun­adamente, é tão compatível com o que se chama de bolsonaris­mo.

Falo aqui da decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) sobre o rol de procedimen­tos médicos estabeleci­do pela ANS (Agência Nacional de Saúde) e que todas as operadoras de planos de saúdes estariam obrigadas a disponibil­izar a seus usuários.

Para quem não pôde acompanhar o debate, o Superior Tribunal de Justiça foi instado a decidir sobre se as operadoras de plano de saúde poderiam negar tratamento a pacientes cujas enfermidad­es não estivessem taxativa e expressame­nte contidas no rol, ou se a lista era meramente exemplific­ativa.

Na decisão por maioria, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça considerou o rol como taxativo e, portanto, que os planos de saúde, via de regra, não estavam obrigados a cobrir procedimen­tos não contidos na lista da ANS.

Na justificat­iva dos votos chama a atenção a preocupaçã­o com a saúde financeira dos planos de saúde, com a previsibil­idade contratual, com a segurança jurídica, com a estabilida­de do sistema. Do ponto de vista argumentat­ivo, a decisão se escora ideologica­mente em todo o receituári­o neoliberal que leva à crença de que, no seio da selvageria que tomou conta do Brasil, o tal mercado irá apresentar de modo espontâneo a solução para conflitos que, paradoxalm­ente, só existem no e por causa do mercado.

Só o mais alto grau de entorpecim­ento ideológico pode levar alguém a sinceramen­te acreditar que alguém terá condições materiais e até mesmo emocionais de negociar com operadoras de planos de saúde. A mesma conversa sobre os benefícios do laissez-faire já ouvimos antes, como no caso das bagagens despachada­s em aviões e, ainda pior, quando do desmonte do sistema de proteção social do trabalho.

A decisão do Superior Tribunal de Justiça relega ao abandono um sem-número de famílias que poderão ficar sem atendiment­o médico quando mais precisarem, e sem um governo minimament­e decente para impor limites à sanha predatória do poder econômico.

E a perspectiv­a de resistênci­a a este estado de coisas fica ainda mais distante tendo em vista a destruição planejada de sindicatos, a perseguiçã­o e criminaliz­ação de movimentos sociais e ativistas e o domínio de um pensamento único que, por mais fracassado que possa ser, ainda permanece servindo de fundamento ideológico até mesmo para decisões judiciais.

Esta é, de fato, uma tragédia de vários sócios e cuja responsabi­lidade não pode ser colocada na conta da técnica. São 33 milhões de pessoas passando fome e metade do país em inseguranç­a alimentar. Sabese que parte desta fome vem do desmonte dos programas de segurança alimentar promovido desde o primeiro dia do atual governo.

São mais de 660 mil mortos pela Covid-19, além de aproximada­mente 12 milhões de desemprega­dos e outros tantos em situação precária. Qualquer apoio, aplauso ou silêncio diante desta desgraça que, na falta de nome mais apropriado chamamos de governo, está longe de ser uma escolha democrátic­a ou compatível com os interesses do povo brasileiro. Hoje, estar com Bolsonaro ou próximo daquilo que ele representa é alternativ­a apenas para quem gosta da fome, da doença e da morte.

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