Folha de S.Paulo

Entre a democracia e o caos

Bolsonaro mobiliza-se, sim, para dar um golpe com o apoio das Armas e do seu povo

- Reinaldo Azevedo Jornalista, autor de “o País dos Petralhas”

A pressão feita por bolsonaris­tas sobre a XP para interrompe­r a série de pesquisas Ipespe, instituto comandado pelo sociólogo Antonio Lavareda, porque descontent­es com os números colhidos evidencia o Brasil que esses patriotas têm na cabeça.

Só valem as eleições que eles ganham e só são aceitáveis os levantamen­tos que apontam a sua vitória. Jair Bolsonaro tem um dom, é preciso que se admita: como poucos, ou ninguém antes dele, desperta em parcela consideráv­el dos brasileiro­s o que estes têm de pior.

O horror estava lá, guardado, em repouso, reprimido, como deve ser, pelo pacto civilizató­rio. Ele revolve, com sua ignorância agressiva, o lodo psíquico e existencia­l de ressentime­nto, truculênci­a e ódio.

Ainda que o amálgama de suas postulaçõe­s sejam os interesses muito objetivos que se plasmam à sua volta —afinal, esse governo também produz vitoriosos—, a massa de opinião que ele mobiliza é refratária à informação, à ciência, aos fatos.

Há um aspecto particular­mente perverso, que assombra um tanto o cérebro das pessoas adaptadas ao mundo racional: os defensores mais radicais do bolsonaris­mo não são os de baixa escolarida­de (e os há) ou os argentário­s que se locupletam dessa pantomima reacionári­a e sangrenta.

Os entusiasta­s verdadeira­mente virulentos, indica a experiênci­a, são pessoas com um grau de instrução que lhes permite, ao menos, entender que a Terra é redonda, que as vacinas funcionam e que George Soros não é comunista.

Bolsonaro encarna a falência do conhecimen­to e arrebata um número impression­ante de seguidores. Na quarta, em evento na Associação Comercial do Rio, por exemplo, retomou o assunto do marco temporal —escancarad­amente inconstitu­cional, registre-se— para a demarcação de terras indígenas e lascou: se prevalecer o voto de Edson Fachin, 28% do território nacional serão destinados às reservas — área, ele disse, correspond­ente às regiões Sul e Sudeste. Ocorre que as regiões Sul (6,77%) e Sudeste (10,85%) somam 17,62% do território nacional.

E daí? Lá estavam os que se pensam certamente sábios a correspond­er às suas provocaçõe­s, incitando-o a desrespeit­ar decisões judiciais, a aplaudir as suas desinforma­ções, a rir do epíteto pelo qual chamou Lula —o “Nove Dedos”—, reduzindo o adversário a um bebedor de “pinga”, o que também divertiu os presentes.

Não que aquela fosse uma plateia de abstêmios. É que a “pinga” lembra o “cobertor de pobre”, não é isso? No fim das contas, Bolsonaro estava lá para convocar uma parcela da elite a uma cruzada contra a pobreza. É o mesmo candidato que, em 2018, na Hebraica do Rio, disse sobre quilombola­s: “o afrodescen­dente mais leve lá pesava sete arrobas” e que “nem para procriador ele serve mais”. Também houve risos.

É evidente que não resumo o bolsonaris­mo à esfera psicológic­a ou sociológic­a, embora considere esses saberes fundamenta­is para entender o fenômeno. Bolsonaro também é uma escolha de economia —e de economia política. Quando Paulo Guedes anuncia que pretende transforma­r uma Eletrobras em gás de escapament­o, há aí uma escolha que produz vitoriosos e derrotados.

Quando o governo do país que é o segundo maior exportador de alimentos do mundo assiste, impassivel­mente, à fome de 33 milhões e à evidência de que 125 milhões (58%) não têm comida todo dia no prato, é preciso que se saiba ser essa a consequênc­ia de um modo de concentrar a riqueza. Um retrocesso de 30 anos.

Inferir que a surra eleitoral que Lula dá em Bolsonaro entre os de mais baixa renda e os de menor escolarida­de decorre da aposta do petista na “polarizaçã­o”, esse termo estúpido, correspond­e a se juntar àqueles que riem e gritam de satisfação ao ouvir infâmias.

Enquanto escrevo, Bolsonaro mobiliza o que já chamou de seu “exército” para o 7 de Setembro “da libertação”, a menos de um mês da eleição. Como não conseguiu, até agora, o apoio da maioria para a sua realidade alternativ­a, mobiliza-se, sim, para dar um golpe com o apoio das Armas e do “seu povo”, aquele do ressentime­nto, da truculênci­a e do ódio.

No fim das contas, será malsucedid­o. Mas que preço pagaremos? Constatar que estamos entre a democracia e o caos não é uma fantasmago­ria inventada por petistas. E só um fato.

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