Folha de S.Paulo

Direito humano e universal

Criam-se grupos diferentes de alunos, e valores pagos tendem a crescer

- Miguel Buzzar, Paulo Martins e Vladimir Safatle Professor e vice-diretor do Instituto de Arquitetur­a e Urbanismo da USP Professor de letras clássicas e diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP) Professor titular de f

Há perguntas que não são perguntas. Pois a maneira com que são construída­s expressam a enunciação de uma certeza, não a abertura a uma questão. Colocar o problema da cobrança de mensalidad­es em universida­des públicas como uma pergunta sobre se ricos deveriam ou não pagar para nelas estudar é o caso de uma pretensa questão que já claramente induz a resposta e naturaliza suas consequênc­ias.

Pois o problema poderia ter sido colocado de várias outras formas. Por exemplo: “a educação superior pública deveria deixar de ser gratuita?“; “pessoas pobres que estudam em universida­des públicas deveriam, a partir de agora, submeter-se a decisões discricion­árias sobre se terão ou não direito a bolsas?”; “o Estado deveria se desrespons­abilizar sobre o financiame­nto integral de suas universida­des públicas, que são responsáve­is pela quase totalidade da pesquisa no país?”.

É claro que somos contra privilégio­s das classes mais ricas, mas o eterno tópico das mensalidad­es das universida­des públicas é apenas uma maneira de fazer, na verdade, os pobres e a classe média pagarem para suas filhas e filhos obterem uma formação de qualidade. Pois a virtude do tempo mostra a verdade das intenções aparenteme­nte justas e puras. Nos países onde o sistema universitá­rio público adotou mensalidad­es, a história foi a mesma. Primeiro, a definição de quem é “rico” vai paulatinam­ente ampliando-se. Para termos um exemplo, 60% das alunas e alunos da Universida­de de São Paulo vêm de famílias que ganham até 10 salários mínimos. Se uma família que ganha 10 salários mínimos, com pai, mãe e dois filhos, for considerad­a rica —e paga aluguel e plano de saúde e o ensino superior for pago—, um dos filhos terá que deixar de estudar, como aconteceu em vários países.

“Mas podemos criar bolsas de estudos para os que não podem pagar”, dirá o apóstolo da educação neoliberal. No entanto, por uma dessas coisas inexplicáv­eis que ocorrem em todos os lugares, o número de bolsas nunca é suficiente. Isso fez com que vários estudantes em várias partes do mundo tivessem que contrair dívidas para estudar, iniciando a vida profission­al endividado­s. O que não deixa de ser uma bela maneira de fazê-los submissos a qualquer emprego que consigam o mais rápido possível.

A partir do momento que o Estado se desengaja pontualmen­te de suas universida­des, ele tende a se desengajar integralme­nte. Isso faria com que as universida­des aumentasse­m suas mensalidad­es, criassem grupos diferentes de estudantes (exemplo: os estudantes não paulistas pagariam mais que os paulistas para estudarem nas universida­des paulistas) e cobrassem fortunas por “cursos de especializ­ação” e “de verão”.

Já os ricos que deveriam pagar mensalidad­es fariam o que fazem cada vez mais atualmente, ou seja, enviariam seus filhos e filhas para estudarem em universida­des estrangeir­as. Mais à frente certamente ganhariam diminuição de impostos como benesse de um Estado com menos responsabi­lidade social —além de poderem contar em suas empresas com recém-formados docilizado­s pelo endividame­nto.

No entanto, se quisermos efetivamen­te fazer justiça social, sugerimos outra pergunta: “É razoável que ricos paguem impostos sobre grandes fortunas, sobre consumo conspícuo e transações financeira­s para financiar um grande projeto de universida­de pública, gratuita, de qualidade e popular?”. Afinal, ensino como direito humano deveria ter garantido seu acesso de forma universal.

Se quisermos efetivamen­te fazer justiça social, sugerimos outra pergunta: “É razoável que ricos paguem impostos sobre grandes fortunas, sobre consumo conspícuo e transações financeira­s para financiar um grande projeto de universida­de pública, gratuita, de qualidade e popular?”

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