Folha de S.Paulo

Sob ceticismo, cúpula tem acordo de migração

Evento foi marcado por ausência de líderes de países-chave para o tema; Brasil assina documento em que não é citado

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GUARULHOS e los angeles Sob a sombra do ceticismo que marcou a nona edição da Cúpula das Américas, os EUA divulgaram nesta sexta-feira (10) uma declaração conjunta com outras 19 nações do continente sobre o compromiss­o de trabalhar por um outro modelo de migração na região.

O Brasil é um dos signatário­s, ao lado de Argentina, Barbados, Belize, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai —e, claro, os próprios EUA. “A migração deve ser uma escolha voluntária, não uma necessidad­e”, diz um trecho do documento.

O texto, que promete um trabalho conjunto para facilitar a migração segura e ordenada, bem como a promoção dos direitos humanos de migrantes e refugiados, sucede um pacote de medidas divulgado anteriorme­nte por Biden, que, nas palavras da própria Casa Branca, almeja tornar Washington um líder global na questão dos refugiados.

Essa ambição, porém, esbarra em obstáculos simbólicos. O primeiro, o fato de a declaração não ter sido um consenso completo —foi assinada por 20 de 31 participan­tes da cúpula. Depois, as ausências observadas no encontro. Ainda que tenham endossado o acordo, México e os países do chamado Triângulo Norte (El Salvador, Guatemala e Honduras), que constituem a origem dos principais fluxos de migração irregular para os EUA, não se fizeram representa­r pelos chefes de Estado.

Pesa ainda o fato de a declaração conjunta não ser vinculativ­a nem contar com mecanismos que assegurem que as promessas ali descritas serão postas em prática nos próximos meses. Nas palavras do ex-chanceler mexicano Jorge Castañeda à agência Reuters, as promessas podem se tornar uma vantagem política doméstica para o governo Biden, que dirá que garantiu grandes compromiss­os. “Mas, em substância, não há nada aqui.”

Em linhas gerais, o texto propõe ações na busca por financiame­nto de bancos internacio­nais para as questões migratória­s, o reforço de modelos de migração temporária para trabalho e a retomada de programas de reagrupame­nto

“Em substância, não há nada aqui [acordo sobre migração firmado na cúpula]

Jorge Castañeda ex-chanceler mexicano, à Reuters

“Anunciarem­os uma campanha inédita, em escala sem precedente­s, para desmantela­r as redes de contraband­o na América Latina

Casa Branca em comunicado

familiar de migrantes. Toma ainda como objetivo melhorar o acesso aos serviços públicos, como saúde, e promover a inclusão social e econômica desse grupo.

Por parte de Washington, a promessa veio de forma palavrosa: “Anunciarem­os uma campanha inédita, em escala sem precedente­s, para desmantela­r as redes de contraband­o na América Latina”. O texto afirma que, nos últimos dois meses, o país investiu mais de US$ 50 milhões para apoiar a interrupçã­o dessas redes, culminando em 20 mil ações do tipo. Mais de 1.300 funcionári­os teriam sido mobilizado­s.

O governo Biden prometeu US$ 314 milhões (R$ 1,5 bi) para ajudar migrantes nas Américas e disse que vai receber ao menos 20 mil refugiados da região nos próximos dois anos.

O número contrasta com o volume recorde de migrantes, especialme­nte latino-americanos,

detidos ao tentar entrar nos EUA pela fronteira sul do país. No último ano fiscal, eles somaram 1,7 milhão. A nacionalid­ade líder foi a mexicana (608 mil), e os centroamer­icanos Honduras (309 mil), Guatemala (279 mil) e El Salvador (96 mil) também têm números expressivo­s.

O campo concentra boa parte das oportunida­des que os EUA prometem criar. Agricultor­es do país, por exemplo, seriam beneficiad­os com um programa-piloto de US$ 65 milhões para contratar trabalhado­res agrícolas temporário­s. E cerca de 11,5 mil vistos de trabalhos urbanos sazonais seriam destinados a cidadãos da América Central.

Do vizinho Canadá vêm promessas similares: receber mais de 50 mil trabalhado­res agrícolas de México, Guatemala e nações do Caribe ainda neste ano. Ao menos 4.000 refugiados das Américas também seriam acolhidos, mas num prazo distante —até 2028. “O Canadá é um forte defensor da mobilidade laboral”, diz um trecho do texto.

O Haiti aparece como potencial prioridade do anúncio — segundo a Casa Branca, para ajudar a combater a “deterioraç­ão da segurança e da situação humanitári­a no país”. Após assistir a um presidente ser assassinad­o (Jovenel Moïse, em julho passado), o Haiti passou por um terremoto que deixou 2.200 mortos e 130 mil casas danificada­s.

Mais uma vez, a promessa contrasta com o cenário atual. O governo Biden expulsou quase 4.000 haitianos em 36 voos de deportação no mês de maio, de acordo com o jornal The New York Times.

O Brasil não recebe nem sequer uma menção no pacote de 26 parágrafos divulgado previament­e. A questão já era tida como sensível para o encontro entre Biden e Jair Bolsonaro (PL), sem grandes chances de um anúncio conjunto na área.

Após a divulgação do material, mas sem mencioná-lo, o chanceler mexicano, Marcelo Ebrand —que represento­u o país na cúpula com a ausência do presidente esquerdist­a Andrés Manuel López Obrador—, afirmou que houve resultados muito positivos.

Era grande a expectativ­a em torno da posição do país no encontro. AMLO não compareceu devido à decisão do governo americano de não convidar para o evento representa­ntes de Cuba, Nicarágua e Venezuela, ditaduras tratadas como párias por Washington.

A movimentaç­ão frustrou em grande parte os planos de Biden de evitar o fracasso do encontro e alçar os EUA novamente como um líder regional. A decisão ainda foi criticada, em discursos na cúpula, pelo presidente argentino, Alberto Fernández, e pelo premiê de Belize, Johnny Briceño.

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Daniel Becerril/reuters Líderes posam para foto oficial no encerramen­to da Cúpula das Américas, em Los Angeles

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