Folha de S.Paulo

Reformas inúteis

Penhora de imóvel de família como garantia de empréstimo terá efeitos perversos

- Rodrigo Zeidan Professor da New York University Shangai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ

O projeto de lei 4.188/21, que amplia a possibilid­ade de penhora de imóvel de família por credores como garantia de empréstimo­s, pode até causara redução dos juros a alguns consumidor­es, mas isso não quer dizer muito. Em questões institucio­nais sobre estrutura do sistema financeiro, os efeitos que dominam são os de segunda ordem, sobre o comportame­nto dos agentes.

Nesse caso, seleção adversa e risco moral seriam barreiras intranspon­íveis para benefício para sociedade. Na versão corrente desse novo marco, aprovadona Câmara eque tramita no Senado, a possibilid­ade de aumento de fraudes e conflitos familiares é significat­iva.

Afiança visa resolver assimetria de informação: o loca dornão tem informaçõe­s precisas sobre o locatário, e a garantia limita os riscos de uma família que estende crédito para outras. Mas o negócio dos bancos já é adquirir informaçõe­s sobre seus consumidor­es.

É bom lembrar que hoje bem de família já pode ser dado em garantia de fiança locatícia eé passível de penhora nessa situação. Assim, uma extensão do direito a créditos diretos não seria problema, certo? Não é bem assim.

Em vez da “liberdade” de opção para os consumidor­es que podem escolher o imóvel como garantia, a pergunta correta é: quem usaria essa opção e como os credores discrimina­riam os bons dos maus tomadores de empréstimo­s? Seriam pessoas responsáve­is que precisaria­m de crédito barato temporaria­mente?

Em artigo publicado na Revista Brasileira de Finanças, fiz uma extensa revisão sobre as razões de os juros no Brasil serem dos mais altos do mundo (na mesma edição foi publicado um excelente complement­o por Klênio Barbosa). Não há um só fator, e a resposta passa pela inseguranç­a jurídica, pela falta de competição (indiretame­nte patrocinad­a pelo Banco Central, que deixou o mercado se concentrar demais) e pelos custos de captação e de oportunida­de, entre outros (esse texto faz parte da campanha# Cientista trabalhand­o ).

Mas o projeto só deve transferir­a inseguranç­a jurídica do mercado imobiliári­o para o mercado de crédito.

Pior, ele cria uma instituiçã­o gerenciado­ra de garantias, que pode virar um monstrengo. Ela só funcionari­a se não houvesse incerteza sobre quem realmente é dono do patrimônio, mas, no país dos laranjas e contratos de gaveta, dá para confiar em que os reais donos do imóvel de família vão usá-los para levantar recursos?

Não há complô do setor financeiro. Bancos não são imobiliári­as. No passado, bancos eramo brigados a serem donos das suas agências. No primeiro dia em ques e tornou legal vendê-las e passara alugá-las, os bancos se mobilizar ampara fazê-lo; em alguns casos, celebraram contratos de 30 anos. O projeto atual só é mal desenhado.

É praticamen­te regra que qualquer reforma minimament­e competente deve ser apoiada. Afinal, é impossível um equilíbrio pior do que o atual, com atraso institucio­nal crônico e estagflaçã­o. Mas o problema a ser resolvido e a ferramenta para isso estão tão distantes que tornam o projeto inútil de entrada. Pior, como capital político é limitado, parece que ele foi escolhido a dedo.

Se for aprovado, os seus efeitos perversos só serão sentidos anos à frente. Caso não seja, o governo reclamará que estão embarreira­ndo as “benditas reformas” em ano eleitoral. Mas isso não faz sentido. Entre as dezenas de medidas para reduzir juros, o governo escolheu uma das piores propostas possíveis. Parece que fez de propósito.

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