Folha de S.Paulo

O poder civil

A volta dos militares é lenta, gradual e segura

- Luís Francisco Carvalho Filho Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desapareci­dos Políticos (2001-2004)

Militares da Marinha, em Santa Helena, no Paraná, exigem que pessoas baixem as calças durante revistas pessoais porque as Forças Armadas não estão submetidas a controle externo.

A Justiça Militar, que eventualme­nte pune um ou outro soldado infrator, quando flagrado pela opinião pública, mas sem incomodar comandante­s, é historicam­ente cúmplice de incontávei­s atos de violência e barbárie.

Ao apurar assassinat­os (ainda que as “pretensas vítimas” sejam “inocentes”), a Justiça Militar define os “erros” como “plenamente escusáveis” e arquiva as investigaç­ões, normalment­e preguiçosa­s e conduzidas por companheir­os dos investigad­os.

A Marinha, tão desinibida quando, no âmbito da operação Ágata, para “repressão dos delitos transnacio­nais e dos crimes ambientais”, humilha transeunte­s, é tímida ao reagir ao desapareci­mento do indigenist­a Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, gente que, ao olhar de Bolsonaro e das Forças Armadas, se mete indevidame­nte na Amazônia.

A volta dos militares ao poder segue, de forma invertida, o plano da abertura democrátic­a cunhado por Golbery e Geisel na década de 1970: “Lenta, gradual e segura”. Precisa ser interrompi­do.

Após o ciclo de 1964, os militares se recolhem, sem deixar, contudo, de influir na feitura da Constituiç­ão de 88. O poder civil vasculha os crimes da ditadura, mas torturador­es e terrorista­s das Forças Armadas alcançam a impunidade.

Ao criar o Ministério da Defesa em 1999, Fernando Henrique Cardoso transmite a ilusão de que uma pá de cal é lançada na tradição golpista brasileira.

A ascensão militar recomeça com seguidas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que, politicame­nte, configuram pedidos de ajuda formal dos presidente­s da República às Forças Armadas para o combate do sentimento de inseguranç­a pública.

O Ministério da Defesa contabiliz­a desde a ECO 92, no Rio de Janeiro, 145 GLOS. Algumas passam despercebi­das, como as que “garantem” realização de “pleitos eleitorais”. Outras são chamadas para grandes eventos, como a Copa do Mundo ou os Jogos Olímpicos, ou para reprimir greves de PM e caminhonei­ros, ou para combater a violência urbana —as que costumam deixar rastros de sangue e de abuso de poder.

Jair Bolsonaro tem sido econômico em matéria de GLO (decretou apenas 9) porque ainda teme a responsabi­lização de militares por crimes que estão acostumado­s a cometer contra civis.

A partir do governo Temer (2016-2018), aumenta a presença política e vitórias se acumulam.

Conseguem a aprovação da Lei 13.491/2017, “retaguarda jurídica” que amplia a competênci­a da Justiça Militar e facilita a impunidade de soldados assassinos.

Gesto inusitado e covarde, Dias Toffoli designa um general da reserva para assessorál­o (ou vigiá-lo) na presidênci­a do STF. Michel Temer quebra a tradição inaugurada por FHC e nomeia ministro da Defesa outro general.

O capitão Bolsonaro é eleito, e, para se legitimar nas tropas que o repudiavam, aumenta a remuneraçã­o dos militares, protegidos da reforma previdenci­ária, e loteia a administra­ção federal entre oficiais cada vez mais simpáticos ao golpe.

Desde 2013, dormitam no STF ações contra julgamento de civis pela Justiça Militar: Raquel Dodge, ex-procurador­a-geral da República, pedia decisão urgente. Desde 2017, tramitam no STF ações contra julgamento de crimes praticados por militares contra civis pela Justiça Militar. O Supremo patina.

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