Folha de S.Paulo

O vírus é meu date no Dia dos Namorados

- Marcos Nogueira folha.com/cozinhabru­ta

Morangos e flores saindo por todos os orifícios, doces em forma de coração, cascatas de chocolate e cachoeiras de espumante doce

O Dia dos Namorados é uma data que solteiros, separados e encalhados em geral adoram achincalha­r. Para começar, pela sua origem escandalos­amente marqueteir­a: o publicitár­io João Agripino Doria, pai do ex-governador de São Paulo, inventou essa história em 1949 para ajudar o comércio em junho, então um mês fraco para os lojistas.

É um despudor de breguice, esse tal de Dia dos Namorados. Morangos e flores saindo por todos os orifícios, doces em forma de coração, cascatas de chocolate e cachoeiras de espumante doce.

A noite do 12 de junho existe para se pegar fila na porta do motel, do Paris 6, do Coco Bambu e do Era Uma Vez um Chalezinho, onde casais voluntaria­mente esfolam suas contas bancárias para comer fondue.

Fondue, taí um negócio de que eu sinto falta. Costuma ser caro e ruim, mas também pode ser bom e mais caro ainda —se você comprar os queijos que nenhum restaurant­e usa. E nem precisa ser um ritual romântico: o fondue nasceu como uma refeição comunitári­a de camponeses para aproveitar queijo velho.

Esse espírito de camaradage­m fica um pouco complicado em tempos de pandemia. Meter o garfo na panelinha borbulhant­e é algo que você só deve fazer com quem já compartilh­a a saliva em situações mais lúbricas.

Oque resta ao solteiro, então? Gastar 80 contos num fondue de caixinha vagabundo e comê-lo sozinho, tristement­e, à luz de lâmpada de LED e ao som de Reginaldo Rossi? Não, melhor se abster do fondue.

Sem fondue, nem namorada, nem mágoas, eu tinha planos para o Dia dos Namorados.

Planejava um domingo absolutame­nte normal com meu filho de 9 anos. Programaçã­o caseira, filminho na TV e jogosd eta buleiro, sem encararas elva de apaixonado­s nos restaurant­es. Mas aí veio a Covid, e eu precisei me isolar. O vírus será meu date neste 12 de junho.

Tive dois anos e três meses de invencibil­idade, comecei atéa desconfiar que eu fosse, de alguma forma, especial. Adivinha só: não sou. Aqui estou eu, com o corpo entregue à doença, que me castiga na cama como poucas fizeram antes.

Brincadeir­as à parte, desenvolvi sintomas leves, graças às três doses de vacina.

O coronavíru­s nãoéo date ideal —muito pelo contrário, cabe-lhe perfeitame­nte a expressão “antes só do que mal acompanhad­o”. Enxotá-lo da minha vida não é uma opção, infelizmen­te.

O jeito é esperá-lo ir embora e, enquanto isso, a sensatez manda respeitá-lo. Mais: há de se negociar uma convivênci­a possível com o intruso. Levando-se em conta que ele sempre tem razão.

O vírus vetou terminante­mente o vinho que eu pretendia tomar neste fim de semana. Nossos jantares serão à base de água, muita água.

Febril, tentei convencê-lo de que o fondue seria uma boa ideia, afinal tenho uns queijos bacanudos dando mole na geladeira. Mas o vírus me devolveu à razão. Nada de fondue. Ele exigiu sopa. Sopa o vírus terá.

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