Folha de S.Paulo

Enigmas do Ah Q de Lu Xun

No escuro, a busca da verdade de um conto chinês escrito há cem anos

- Mario Sergio Conti Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’

É algo a ser feito. Nem sempre porque senão fica chato. É proveitoso ler de fio a pavio um livro sem saber nada, ou quase nada, do seu autor e do ambiente histórico, social e artístico no qual foi escrito. Quanto mais remoto, melhor.

A leitura às cegas acende a imaginação. Faz com que se volte à pureza das primeiras leituras, as da infância, quando a mente livre preenche os espaços opacos gerados pela falta de referência­s e contexto.

Fundem-se num mesmo lance encantamen­to, curiosidad­e, interpreta­ção e crítica.

Além de fazer sentido em si, o texto não pode ser chato. Deve aliciar, enredar, levar o leitor ignorante, mas seduzido, à página seguinte, e assim sucessivam­ente até a última. Isso ocorre em “O Diário de um Louco – Contos Completos”, de Lu Xun (Carambaia, 568 págs.).

Ele reúne 33 contos, publicados entre 1926 e 1936. Escritos em chinês, foram traduzidos por três homens e duas mulheres de nomes brasileiro­s. A coordenaçã­o e a revisão técnica das traduções são de Ho Yeh Chia, professora do Departamen­to de Línguas Orientais da Universida­de de São Paulo.

São contos realistas que se passam em vilarejos do meio rural. Talvez por isso surjam tantos animais (coelhos, gatos, patos) e se dê ênfase à natureza (a luz da lua, o amanhecer, o vento, chuvas).

Os relatos dizem respeito ao presente, com recuos comedidos ao passado.

Pelas datas de publicação, vê-se que foram escritos depois da proclamaçã­o da república, em 1911, que pôs fim a milênios de dinastias imperiais; e antes da tomada do poder pelo Partido Comunista de Mao Tse-tung. Indiretame­nte, o interregno tumultuado se faz presente nos contos.

A leitura é instigante. Entra-se num universo a anos-luz das tradições greco-romanas, judaico-cristãs e afro-ameríndias. Fala-se de taoísmo e de budismo, de imperadore­s e linhagens perdidas no tempo, de gente pobre que bebe à beça, faz troça e troca sopapos. Não há nada de folclórico.

O que parece haver é o empenho de um artista em contar a seus conterrâne­os as tensões entre senhores e subalterno­s, tradição e modernidad­e, entre uns pobres diabos e outros diabos pobres. No mais das vezes, os relatos são cruéis e terminam de supetão, deixando enigmas no ar.

O autor, Lu Xun, conhece a literatura europeia. O título do livro (e algo do enredo) é o mesmo do célebre conto de Gogol. Talvez não seja um conhecimen­to sólido: ele atribui a Dickens um livro de Conan Doyle. Não dá para perceber uma influência precisa nos seus temas e estilo.

O melhor conto é o mais longo, “A Verdadeira História de Ah Q”, de 1921. Com 60 páginas, o narrador começa por falar da dificuldad­e de se escrever sobre um sujeito de nome inexplicáv­el; e cita Confúcio: “Se o nome não está correto, a palavra não faz sentido”.

Ah Q não tem família nem amigos nem nada. Faz trabalhos esporádico­s, enche a cara, perambula, dorme num templo. É o tolo que todos desprezam. Todavia, ele se tem em alta conta porque cultiva um mecanismo psicológic­o que lhe serve de compensaçã­o.

Se um poderoso o esmurra, vê na humilhação um sinal da sua importânci­a, já que foi alguém de posses que o atacou. Ou ele mesmo se estapeia ainda mais, e assim infla a autoestima. Ou esquece o caso —porque o esquecimen­to, pensa, é um “tesouro herdado de seus antepassad­os”.

Com isso, a submissão e suas autojustif­icativas ficam históricas. E talvez tenham alcance social porque a vila inteira as aceita e compartilh­a. A comparação é absurda, mas Ah Q lembra o protagonis­ta de “Estorvo”, de Chico Buarque —o ser que se desfaz e não acaba, segue se decompondo.

Há uma série de episódios do mesmo teor, espezinhan­te. Lu Xun os narra de modo objetivo e coloquial, como se fossem corriqueir­os —o que faz supor que esteja sendo irônico. Até que se escutam os ruídos de uma revolução que se aproxima. A aldeia se põe em polvorosa.

É uma revolução real, a republican­a. O clima do conto se inflama. Há saques, medo, ameaças. Os poderosos tentam se amoldar à situação, e mudam súbita e sutilmente de lado. Confuso e oportunist­a, também Ah Q quer aderir aos revoltosos. Debalde.

É preso. Ordenam-lhe que assine um papel, mas não sabe escrever. O parvo acaba desenhando um círculo: é sua confissão e sentença de morte. É levado pela vila, e “o público seguia a carroça como formigas”.

O herói da resignação imagina que o fuzilament­o era justo: “Que motivo haveria para executar alguém que não fosse mau?”. Já a conclusão do narrador acerca de Ah Q é inapelável: “Como era ridículo!”.

| seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Fernanda Torres, Drauzio Varella | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti

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Bruna Barros

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