Folha de S.Paulo

Série retrata cofundador da Uber como super-herói para fãs de bilionário­s

Com ar datado, ‘Super Pumped’ se perde de vez quando deixa a história corporativ­a de lado para humanizar executivo que jogava sujo

- Gustavo Soares

SÃO PAULO Você é babaca?”, pergunta Travis Kalanick (Joseph Gordon-levitt), cofundador da Uber, a um jovem, na primeira cena da série “Super Pumped”. Aspirante a funcionári­o da startup, o rapaz hesita em responder. Ele não sabe que a resposta certa para ser admitido é “sim”.

Criada por Brian Koppelman e David Levien, de “Billions”, e baseada no livro “A Guerra pela Uber”, do jornalista Mike Isaac, a produção mostra a ascensão e a queda do EX-CEO da empresa. Ele renunciou ao cargo em 2017 após escândalos envolvendo quebra de privacidad­e de usuários, assédio sexual e ambiente de trabalho tóxico.

Os sete episódios da temporada, exibidos entre fevereiro e abril, partem da fundação da startup, em 2009, para abordar a figura controvers­a de Kalanick, a cultura das startups e o cresciment­o explosivo da Uber nos anos 2010.

Embora a ideia de criar um serviço de transporte “sem fricções” tenha sido do outro cofundador, Garrett Camp (Jon Bass), foi Kalanick quem fez a empresa florescer. O aplicativo de transporte hoje vale US$ 45,5 bilhões.

A Ubercab, como era chamada até 2011, foi um serviço de corridas no qual apenas carros pretos e de luxo eram permitidos. Ainda antes da populariza­ção dos smartphone­s, a empresa operava por meio de um site na internet. A evolução da interface do aplicativo pode ser vista no site uxtimeline.com/uber.

Por causa de uma disputa jurídica com taxistas de San Francisco, a empresa passou a se chamar Uber, sem o “cab” (táxi, em inglês). Afinal, o propósito não é oferecer carros, mas uma tecnologia nova, justifica Kalanick na série.

“Super Pumped” ainda mostra que, para chegar aonde chegou, a empresa lidou com a concorrênc­ia da startup Lyft —contra a qual Kalanick jogava sujo—, conquistou um investimen­to de US$ 250 milhões da Google e convenceu Tim Cook a manter o aplicativo na App Store mesmo após descumprir regras de privacidad­e da Apple.

O auge da empresa, contudo, é pouco explorado na série. Não há, por exemplo, cenas que dão magnitude ao cresciment­o rápido nos anos seguintes à adoção da Uberx. Em 2016, o aplicativo já contava com cerca de 50 milhões de usuários ativos.

Um motorista da Uber só tem algum protagonis­mo quando Fawzi Kamel (Mousa Hussein Kraish) publica um vídeo na internet em que aparece discutindo com Kalanick sobre a repartição dos preços das corridas.

Crises de relações públicas a empresa tem de sobra. A trama destaca os episódios de comentário­s machistas do CEO, a espionagem de usuários para driblar a fiscalizaç­ão pública (tática conhecida como Grayball) e o post viral da ex-funcionári­a Susan Fowler, que denunciou a forma como a Uber lidava com assédio sexual.

Mas, em vez de se concentrar em contar bem uma só parte da história, a série quer abranger, ao mesmo tempo, a evolução da Uber, a vida de Kalanick e a cultura corporativ­a do Vale do Silício.

Há ainda a tentativa de mostrar um lado supostamen­te descolado do Vale do Silício, que beira o constrange­dor.

Por exemplo, os primeiros passos da expansão da Uber são mostrados como fases de videogame, os personagen­s quebram a quarta parede para contar piadinhas, e palavrões são ditos com a única intenção de deixar aqueles personagen­s mais joviais.

Mas “Super Pumped” se perde de vez quando deixa a história corporativ­a de lado para humanizar Kalanick. Apesar do esforço para pintar o EXCEO como um anti-herói, a forma protocolar com que a série explora sua vida pessoal e os conflitos internos da Uber só evidenciam um lado heroico.

Na série, as relações de Kalanick com família, investidor­es e namoradas só servem para mostrar que nada podia pará-lo. Mesmo tropeçando, ele sempre sobressai. A produção poderia oferecer uma nova faceta dos protagonis­tas do Vale do Silício, mas acaba se tornando uma versão de filmes de super-heróis para entusiasta­s de startups.

O executivo é ambicioso, egocêntric­o, debochado e não tem medo de contestar figuras hegemônica­s do setor. Em alguns momentos, essa persona remete até ao expresiden­te Donald Trump, de quem Kalanick foi conselheir­o econômico por dois meses.

Tema recorrente de livros, filmes e séries, o Vale do Silício já não é mais o paraíso tecnológic­o de dez anos atrás. Os fundadores não têm mais a força que tiveram Elon Musk, Mark Zuckerberg e Travis Kalanick. Contar a história de um executivo desse porte de forma simplista só faz dar à série um ar datado.

Filmes como “A Rede Social” e “Steve Jobs” exploram a relação entre fundador e empresa sem recair em arquétipos. Séries como “Succession” e “Severance” abordam a cultura corporativ­a sem deixar de criar bons personagen­s. “Silicon Valley” parte de vez para a sátira. “Super Pumped” tenta misturar as três abordagens, mas acaba falhando em todas as frentes.

Kalanick deixou a Uber em junho de 2017 e logo em seguida vendeu 90% de suas ações. Hoje, sua fortuna é estimada em US$ 2,8 bilhões. Depois da renúncia, o app passou a incentivar gorjetas, opção à qual EX-CEO sempre foi contra.

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Divulgação Joseph Gordon-levitt (como Travis Kalanick, da Uber) e Uma Thurman em cena de ‘Super Pumped’, disponível na Paramount+
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EUA, 2022. Com Joseph Gordonlevi­tt, Kyle Chandler e Uma Thurman. Os sete episódios estão disponívei­s na Paramount+
Super Pumped ★ ★★★★ EUA, 2022. Com Joseph Gordonlevi­tt, Kyle Chandler e Uma Thurman. Os sete episódios estão disponívei­s na Paramount+

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