Folha de S.Paulo

Naufrágio geral

- Preto Zezé Presidente Nacional da Cufa, escritor e membro da Frente Nacional Antirracis­ta

Quando pequeno, dona Fátima, minha mãe, me levava ao supermerca­do. Era um momento de muita angústia —embora disfarçass­e bem com uma falsa alegria—, que meus desejos de tomar um iogurte, comer um hambúrguer ou uma simples pizza que eu via somente na TV alimentava­m, com a esperança de um carrinho de compras que voltasse para casa com esses desejos de consumo realizados.

Ao chegar ao caixa, se iniciava a primeira etapa da angústia, que era torcer para que a pouca grana conseguiss­e levar o básico; a segunda, mais dolorosa, era contar as compras e torcer para que elas ultrapassa­ssem a terceira lista, o que nunca ocorria.

A fome é mais que uma dor física. Eu já senti, já vivi, não li em lugar algum. Ela corrompe toda a crença numa ideia de coletivida­de, de possibilid­ade de pertencer a algo que minimament­e considerem­os sociedade.

Infelizmen­te, chegamos aos dias de hoje com 33 milhões de pessoas que nem sequer poderão contar as compras do carrinho, vidas humanas, patriotas, que não sabem o que terão no almoço, na janta ou no café para dar aos seus filhos.

Queríamos um mundo ideal, mas, infelizmen­te, iremos lançar a terceira etapa do programa Mães da Favela, que nos últimos dois anos, com apoio de 150 empresas, arrecadou R$ 870 milhões, atendendo a 16 milhões de pessoas. A Cufa (Central Única das Favelas) criou o Mães da Favela no início da pandemia e o dividiu em duas fases.

Além de grandes empresas e da sociedade civil, envolvemos clubes de futebol, escolas de samba e grandes artistas, pois acreditamo­s que o combate à fome é uma luta e um dever social de todos.

Agora estamos, mais uma vez, arregaçand­o as mangas com esses números assustador­es de tantas pessoas passando fome, com o intuito de atenuar o sofrimento desses brasileiro­s, como fizemos em 2020 e em 2021, sendo reconhecid­os por isso internacio­nalmente.

Ações realmente patriótica­s são não deixar nenhum irmão ou irmã passar fome e quebrar de vez esse ciclo de violência do projeto político chamado fome. Pois não podemos, com tanta riqueza, aceitar essa situação calamitosa como acidente. A fome é um projeto político e violento.

Vemos a tecnologia avançando, homens ricos pensando em colonizar outros planetas, o desperdíci­o de alimentos sendo oito vezes o tamanho da fome. É preciso urgentemen­te agir por todas as frentes necessária para enfrentar esse fogo que não queima as elites.

Sabemos que o naufrágio é geral, mas o afogamento é seletivo. Não podemos deixar nossos pares sem boias. Mãos à obra. Mulheres e crianças primeiro!

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