Folha de S.Paulo

Sessões sobre o 6/1 revivem tradição de teatro político nos EUA

Transmissã­o ao vivo de inquérito sobre invasão do Capitólio traz depoimento­s de Watergate à memória

- Lúcia Guimarães

Nova York Audiências públicas de investigaç­ões no Capitólio representa­m uma tradição de teatro político americano desde a segunda metade do século 20, período em que começaram transmissõ­es pela TV.

Na década de 1950, quando os EUA tinham metade da população atual, de 332 milhões, um público médio estimado em 80 milhões de pessoas acompanhou as sessões do subcomitê liderado pelo senador Joseph McCarthy, que selou sua infâmia coma Caça às Bruxas, perseguiçã­o anticomuni­sta a intelectua­is, figuras de Hollywood, integrante­s do governo federal e das Forças Armadas.

Mas foi a investida contra os militares que marcou a virada da opinião pública, simbolizad­a pelo momento em que um advogado do Exército perdeu a paciência depois de McCarthy insinuar que um advogado de seu escritório era membro do Partido Comunista.

“Vamos não assassinar o jovem além desse ponto. O senhor não tem senso de decência, afinal? Não lhe sobrou qualquer senso de decência?”, questionou Joseph Welch em junho de 1954, furando o balão de impunidade que já durava mais de dois anos, destruiu reputações e tornou impossível para um grande número de profission­ais conseguir trabalho. Depois, colegas do Partido Republican­o se voltaram contra McCarthy, que foi censurado no Senado e morreu de complicaçõ­es por alcoolismo três anos depois. A frase de Welch sobre “o senso de decência” entrou para o vocabulári­o político americano.

Esta semana marca os 50 anos de um arrombamen­to que pôs fim à Presidênci­a de Richard Nixon. Cinco trapalhões contratado­s pela Casa Branca foram presos em flagrante, em 17 de junho de 1972, colocando escutas na sede do Partido Democrata, no complexo de edifícios Watergate, em Washington.

Não era a primeira incursão do presidente em métodos ilegais para conseguir informaçõe­s, perseguir e punir adversário­s. Mas a execução tosca da invasão, que visava minar a candidatur­a do democrata George McGovern nas eleições daquele ano, deu origem a esforços para acobertar o crime e blindar Nixon. Ele se reelegeria de lavada, vencendo McGovern em 49 dos 50 estados.

“Lembre que os americanos, na maior parte, ignoraram o escândalo de Watergate durante um ano”, diz à Folha John Dean, ex-conselheir­o jurídico da Casa Branca de Nixon. Numa conversa por telefone de sua casa em Beverly Hills, na Califórnia, Dean joga água fria no clima de expectativ­a que precedeu a audiência ao vivo do comitê da Câmara encarregad­o de investigar a invasão do Capitólio, em janeiro de 2021.

A primeira transmissã­o, na última quinta (9), em horário nobre, foi comparada às audiências de Watergate, em 1973, que eletrizara­m tardes antes marcadas pelas soap operas, as telenovela­s americanas.

“Quando chegou a minha vez de depor”, lembra Dean, “o público já chegava a 85 milhões”. “Mas não tenho uma frase de efeito boa sobre a importânci­a dessas audiências do 6 de Janeiro”, diz o autor da frase de efeito mais famosa dos depoimento­s de Watergate: “Comecei por dizer ao presidente que havia um câncer crescendo na Presidênci­a e, se o câncer não fosse removido, o próprio presidente seria morto por ele”.

Dean foi a testemunha mais importante para incriminar Nixon. Ele era um advogado inexperien­te de 31 anos quando foi nomeado por ele em 1970 e nem sempre era notificado dos truques dos capangas do presidente. Mas foi instrument­al nas ações de acobertame­nto e renunciou em abril de 1973, quando sua memória foi decisiva para colocar Watergate num contexto de criminalid­ade na Casa Branca.

Em troca da delação, Dean se confessou culpado de uma só acusação —obstrução da Justiça. Por pagar pelo silêncio dos invasores de Watergate, pegou uma pena que cumpriu, de fato, ao longo de quatro meses, sob o programa de proteção a testemunha­s, em razão de ameaças de morte.

Sobre a calma metódica que exibiu diante das câmeras naquele junho de 1973, Dean, que já havia trabalhado como assessor jurídico no Congresso, diz que sabia navegar naquele ambiente. “E eu não me considerav­a importante. O que importava ali era educar o público americano.”

Hoje, 50 anos depois, o cenário em um país polarizado é outro. A rede de cabo Fox News, com sua audiência cativa do público trumpista e com papel ativo no compartilh­amento de mentiras sobre a vitória legítima de Joe Biden que inflamaram a invasão do Capitólio, foi a única a não transmitir a audiência da quintafeir­a, que interrompe­u também a programaçã­o das três principais redes de TV aberta.

Há, porém, um detalhe em comum. Em julho de 1973, as sessões públicas de Watergate

enveredara­m pelo terreno do entretenim­ento, quando o anfitrião de talk show Dick Cavett levou as câmeras do seu programa para dentro da sala do comitê do Senado no qual desfilavam as testemunha­s.

Cavett, talvez o mais intelectua­l de todos os anfitriões da noite na TV americana, orquestrou com humor fino as entrevista­s com protagonis­tas do que muitos consideram o escândalo do século. Na semana passada, seu amigo Stephen Colbert, popular apresentad­or de talk show, decidiu entrar ao vivo em seu programa normalment­e gravado à tarde, para destacar a importânci­a da investigaç­ão do 6 de Janeiro.

Talvez a comparação mais apropriada ao clima de erosão democrátic­a e impunidade que culminou no ataque ao Legislativ­o americano esteja em outra temporada de audiências públicas, as do escândalo Irã-Contra, no verão americano de 1986. A estrela dos interrogat­órios naquele ano era o coronel Oliver North, facilitado­r, na Presidênci­a de Ronald Reagan, da venda ilegal de armas ao Irã para financiar ajuda secreta aos contras na Nicarágua. Foi condenado e nunca passou um dia na prisão.

Mas um contraste do 6 de Janeiro com Watergate é mais relevante. Nixon praticou crimes e renunciou sob pressão de correligio­nários que o abandonara­m. Trump, o primeiro presidente da história americana a convocar um motim para derrubar um governo eleito, segue impune e apoiado pelo Partido Republican­o.

[ Nixon praticou crimes e renunciou sob pressão de correligio­nários que o abandonara­m. Trump, que convocou um motim para derrubar um governo eleito, segue impune e apoiado pelo Partido Republican­o

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