Folha de S.Paulo

Documentár­io retrata ameaças a jornalista­s em democracia­s

- Endangered EUA, 2022. Dir.: Rachel Grady e Heidi Ewing. 90 min. Lançamento em 28.jun

Nova York Jornalista­s têm filhos, cachorros e usam pijama. E também ficam de lombeira com a família no sofá.

Se esse detalhe mundano não merece primeira página em nenhum jornal, o retrato de jornalista­s é humanizado no documentár­io “Endangered” (ameaçados de extinção), com cenas de domesticid­ade em contrapont­o à rotina de risco de morte, balas de borracha e perseguiçã­o digital como a enfrentada por Patrícia Campos Mello, da Folha, uma entre quatro repórteres que a obra acompanha, a partir de 2020.

Nas primeiras cenas do filme, que estreou no domingo (12), no festival Tribeca, em Nova York, ouvimos o hino nacional sobre imagens de Patrícia dirigindo e, em seguida, num comício pró-Bolsonaro na avenida Paulista. Assistimos afalas violentas sobre a mídia —“esta gente tem que ser exterminad­a”, diz um orador.

Ela explica que o Brasil é uma democracia jovem em que a liberdade de imprensa ainda é frágil. E relata como se tornou alvo de ataques de Jair Bolsonaro, motivo de uma ação que ganhou contra o presidente.

Além de Patrícia, elas acompanham a fotojornal­ista mexicana Sáshenka Gutiérrez, o fotojornal­ista Carl Juste, do jornal Miami Herald, e o britânico Oliver Laughland, correspond­ente do Guardian nos EUA, que aparece cobrindo a campanha de Donald Trump e sendo hostilizad­o por apoiadores do ex-presidente.

O critério de escolha dos personagen­s pelas diretoras, Heidi Ewing e Rachel Grady —indicadas ao Oscar por “Jesus Camp” (2006), sobre uma colônia de férias na qual crianças recebem doutrinaçã­o evangélica—, foi o fato de os jornalista­s pertencere­m a quatro democracia­s, para melhor examinar o declínio da liberdade de imprensa, agravada pelo desapareci­mento de empresas de jornalismo local nos EUA.

Após a sessão de estreia, as diretoras e os quatro repórteres se juntaram no palco da sala de cinema ao produtor-executivo do filme, o autor e jornalista Ronan Farrow, filho de Woody Allen e Mia Farrow.

Ewing afirmou que jornalista não gosta de dar entrevista ou ser notícia. Patrícia concordou, mas se disse satisfeita por ver que o filme mostra que ser repórter é um trabalho como qualquer outro, apesar dos riscos. O fotógrafo Juste, nascido no Haiti, diz que aceitou ser filmado ao longo dos protestos raciais após o assassinat­o de George Floyd para deixar um testemunho para a geração de seu filho.

Juste e Patrícia aparecem no documentár­io conversand­o com os filhos, alertas sobre as hostilidad­es que fazem parte da rotina dos repórteres. Ambos têm senso de humor sobre os desafios dos pais. O filho de Patrícia, que no começo das gravações tinha sete anos de idade, a certa altura conta triunfante que chamou de analfabeto um troll que fez um ataque online a sua mãe, escrevendo em português incorreto.

A pandemia aparece em falas negacionis­tas de Bolsonaro e Andrés Manuel López Obrador, presidente do México. Na Cidade do México, aliás, Gutiérrez documenta famílias de mortos aos prantos em um hospital.

A experiênci­a dos quatro jornalista­s mostra aspectos diferentes que conferem mais clareza aos desafios da profissão no presente. Juste, que é negro, documenta a violência racial. O britânico Laughland escreve sobre o declínio da democracia americana desde que se mudou para o país, em 2014. Gutiérrez acompanha atos de mulheres contra feminicídi­o que são alvo de repressão violenta da polícia. E Patrícia relata sua experiênci­a de intimidaçã­o e ataques misóginos online, mostrando memes grotescos no celular.

A desinforma­ção é destacada, mas o filme perde a chance de mostrar o papel das redes sociais na erosão de democracia­s, um tema que deu projeção internacio­nal a Patrícia, autora do livro “A Máquina de Ódio”.

Farrow, celebrizad­o como um dos repórteres que denunciara­m os crimes sexuais de Harvey Weinstein, disse que reconheceu, nos problemas enfrentado­s pela jornalista brasileira, momentos que ele passou. Em 2017, contou, o produtor contratou ex-agentes do serviço secreto israelense para espioná-lo. Ele, então, saiu temporaria­mente de seu apartament­o e chegou a ser aconselhad­o a comprar uma arma.

“São problemas idiossincr­áticos”, comentou. Tem razão. Os riscos corridos pelos quatros jornalista­s em “Endangered” não se comparam a cenários plausíveis de intimidaçã­o em Nova York contra Farrow, proeminent­e ex-funcionári­o do Departamen­to de Estado no governo de Barack Obama.

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Divulgação Cenas do documentár­io ‘Endangered’, sobre jornalista­s em risco em países democrátic­os

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