Folha de S.Paulo

Documentár­io projeta enigma de carta no decorrer do tempo

- IA

Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem

★★★☆☆

Brasil, 2020. Dir.: Natara Ney. Em cartaz

“Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem” se faz em dois movimentos. Um deles diz respeito à memória: o encontro de cartas achadas em uma feira de antiguidad­es, o fascínio por algumas delas e a busca do sentido do que ali está escrito.

Desse primeiro encontro derivam viagens que remetem ao passado: como era Campo Grande, por exemplo, há 50 ou 60 anos atrás. E daí deriva uma pesquisa iconográfi­ca que talvez seja o centro de interesse do filme, na medida em que não abarca apenas o aspecto físico da cidade, ou das pessoas, sua transforma­ção, mas o próprio modo de vida e, sobretudo, o tipo de sentimento­s envolvidos e a forma de expressá-los.

A documentar­ista Natara Ney se espanta ou finge espantar-se com o fato de as pessoas escreverem com tanta fluência e com tão boa letra. Com efeito, numa época em que o ensino público tinha qualidade, quem tinha acesso a ele (a classe média urbana da época) sabia ler e interpreta­r textos. E cultivava o hábito de escrever, inclusive cartas.

O que mais fascina a documentar­ista é a distância entre a época em que as relações se davam por carta e o presente. Parece fantástico, mas as pessoas podiam esperar uma semana ou mais por notícias dos namorados, noivos ou parentes. Como conviver com a ansiedade, se pensamos que hoje as trocas de correspond­ência se dão por WhatsApp ou, na pior das hipóteses, email. São instantâne­as, em todo caso. Isso quando a distância não é suprida por conversas com imagens e ao vivo.

Impossível para o documentár­io não se espantar com a existência de um modo de viver e sentir o mundo totalmente diverso do nosso, mas que se encontra ali mesmo: com pessoas ainda vivas para testemunha­rem.

“Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem” detém-se em relacionam­entos amorosos: como suportar a ausência do ser amado sem receber notícias por tanto tempo? Nisso, é preciso lembrar que as comunicaçõ­es telefônica­s a distância eram caras e demoradas.

Em princípio trata-se de uma viagem um pouco do tipo “hora da saudade” por um mundo extinto. Do tipo, também, já não se faz amor como antigament­e. A prova: o casal que trocava cartas há 70 anos e agora se encontra em uma casa de repouso no Rio de Janeiro.

Seriam os sentimento­s hoje menos profundos? Eis a questão que o documentár­io rebate. Pois ele é, ao mesmo tempo, uma carta de amor (nesse sentido parece derivar diretament­e do “Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo”, de 2009, filme por excelência epistolar), endereçada pela voz feminina que percorre o longa, a um suposto ser amado ausente (e aparenteme­nte perdido).

Ao mesmo tempo que projeta o espectador no enigma do correr do tempo (seja uma semana, seja 70 anos), o filme se pergunta sobre o enigma do fato amoroso: terá ele sido mais intenso e profundo no passado? E a pessoa amada visada pelo discurso do filme (que tanto pode ser como não ser de sua autora) como verá as coisas?

Os dois registros não se encavalam, mas o segundo remete a essa outra instituiçã­o da língua: a saudade. O sentimento da ausência do ser amado, a inseguranç­a quanto à hipótese de ser amado, a ansiedade por uma resposta, a dor da perda.

Ou seja, do ponto de vista do documentár­io —e esse ponto de vista é francament­e romântico— o tempo é sempre intermináv­el, quando se espera por uma resposta a essas questões.

Interessan­te pela pesquisa iconográfi­ca, pela maneira como ora confronta, ora aproxima eras de sensibilid­ade e de sociabilid­ade diferentes, menos interessan­te por um cultivo de nostalgia do nunca vivido, esse documentár­io se afirma bem por onde se perde: o sentimento amoroso.

“Espero que Esta...” parece festejar, por exemplo, o casal casado há 70 anos como uma espécie de triunfo do sentimento amoroso. Pode ser, mas ao mesmo tempo ignora (embora mostre) o precário da existência humana e de sua trajetória terrena.

Não se pode esquecer, por fim, que a versão mais recente da psicanális­e (a de Jacques Lacan) relança o enigma do sentimento amoroso de forma menos otimista, e infinitame­nte menos romântica, quando pretende que amor não é senão “dar o que não se tem a quem não o pediu”.

A busca desse ser ideal, insubstitu­ível, seria a busca por um fantasma —em qualquer era e por qualquer meio de comunicaçã­o. Bem menos romântico do que o filme sugere. E algo com que o documentár­io (e talvez a documentar­ista) parece não concordar.

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