‘Está Tudo Bem’ passa ileso por indústria da morte
Filme de François Ozon sobre um homem que insiste em morrer se concentra na família para não incomodar ninguém
Está Tudo Bem
★★★☆☆ Bélgica/França, 2021. Dir.: François Ozon. Com: André Dussollier, Géraldine Pailhas e Sophie Marceau. Em cartaz. 14 anos
É verdade que François Ozon tem talvez o mais diversificado repertório do cinema atual. É certo que sua carreira se faz de altos e baixos abissais. Porém, boa parte de seus filmes dedica-se a situações ou atitudes extremas, e é esse também o caso de “Está Tudo Bem”.
Aqui a pergunta que propõe o cineasta é: o que pode fazer um homem quando já não tem controle algum sobre seu corpo? A pessoa em questão é André Bernheim, 85 anos, industrial, que acaba de sofrer um AVC que imobiliza parte de seu corpo e desfigura seu rosto.
André se vê como um homem poderoso, podemos deduzir. Para suas filhas, Emmanuelle e Pascale, seria antes de tudo “cabeça dura”. De todo modo, trata-se de alguém que não admite ser contestado —o que piora a situação de alguém que sofreu um AVC.
Para completar o quadro familiar, trata-se de um homossexual que vive separado da mulher, uma amargurada escultora, embora não divorciado. Música e literatura parecem unir a família. Emmanuelle Bernheim, a filha mais velha, é escritora e a ela caberá, no mais, escrever o romance que serve de inspiração a este filme.
O mais essencial nesse quadro é a determinação de André em fazer as filhas buscarem uma morte assistida. A instituição é proibida na França, mas permitida na Suíça. É ali que Emmanuelle, relutante, buscará ajuda para satisfazer o desejo do pai.
A situação é rara, porém clara. A única coisa intrigante é a presença de um homem, Gérard, que ronda o hospital e procura ver o paciente a todo custo. As filhas de André o chamam de “o canalha”, ou algo por aí. Gérard terá o que fazer na história, mas ela se passa muito mais em torno do luto prévio das filhas: sofrem por alguém que insiste em morrer, quando os sinais são de que poderia se recuperar, talvez não de todo, mas, enfim...
E aí se lançam as indagações subsequentes do filme: o que é a vida, seu valor, quando deve ou não ser vivida; qual o direito de um pai impor às filhas um pesado sofrimento adicional —a culpa de estar colaborando para sua morte.
Embora o caso seja particular (e extremo), as perguntas lançadas são menos originais, embora sempre pertinentes. Para chegar a lançálas convenientemente, Ozon serve-se menos de recursos como enquadramento e luz e bem mais de uma direção de atores muito eficientes.
No mais, trata-se de um grupo forte de atores, em que se destacam André Dussolier (André), Sophie Marceau (Emmanuelle) e Hanna Schigulla (uma suave mensageira da morte; uma mulher forte, porém muito diferente das mulheres fortes que ela se acostumou a interpretar).
É esse conjunto que conduz a uma narrativa fluente (proporcionada também pelo roteiro competente escrito pelo próprio Ozon), em que não falta consistência, embora, ao final, possamos bem perguntar a que vem tudo isso.
Começam então a aparecer os limites do filme. Se a questão central é afinal o que é a vida? E mais: qual a real importância da ideia de bem viver a vida e depois “bem morrer”, como quer André, fazendo da morte uma determinação pessoal?
Estamos em uma classe social burguesa, e aliás o próprio André lamenta o destino dos pobres, que devem necessariamente existir até que a morte os colha (pois a morte assistida é coisa cara). É impossível esquecer, quando ele elabora essa classe de ideias, que não é apenas a morte que aflige a existência dos pobres: o viver cotidiano também é sacrificado.
Ao menos no filme não é abordada a questão do preço do longo tratamento a que André se submete. Uma parte terá sido paga pelo sistema de saúde (no início, quando, inclusive, ele divide o quarto com outro paciente), a segunda, provavelmente, não. De todo modo, em momento algum a questão econômica é levantada, bem como a do custo da medicina contemporânea.
Ozon passa liso pela indústria da morte, patrocinada por tratamentos sempre mais sofisticados e caros. É possível que ela fosse irrelevante para a bem-posta família Bernhier. Porém é ela (aliás, levantada no Brasil por JeanClaude Bernardet) que poderia dar a este filme uma dimensão maior, que a expandiria para além dos limites do sofrimento familiar.
Não fazê-lo ajuda bastante seu filme a não ser incômodo para ninguém —apesar do assunto indigesto— e a se inserir na duvidosa tradição da “qualidade francesa”. A mesma, talvez, que justifique o fato de “Está Tudo Bem” ter sido um dos representantes da França no Festival de Cannes de 2021.