Folha de S.Paulo

O pesadelo do qual não se acorda

A distopia, nascida como nome de gênero literário, sintetiza nosso tempo

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

Parece quase distópico, fruto de alguma distorção no espaço-tempo da linguagem e do pensamento: a palavra distopia, séria candidata a termosínte­se da experiênci­a humana neste início de século, não constava dos nossos dicionário­s poucos anos atrás.

Ou melhor, constava, mas com outro sentido. O Aurélio e o Houaiss registrava­m distopia apenas como um termo médico que quer dizer “localizaçã­o anômala de um órgão no corpo”.

Essa, na verdade, é outra palavra. A distopia que virou figurinha fácil em nosso vocabulári­o —e hoje já é aceita pelo Houaiss, que bom— nada tem a ver com medicina, embora se refira a doenças metafórica­s que atacam o organismo social.

Veio do inglês “dystopia” e a princípio se restringia ao vocabulári­o das artes, em especial da literatura, nomeando um gênero narrativo consolidad­o no século passado como cruzamento entre ficção científica e sátira política.

A palavra surgiu em resposta ao substantiv­o utopia para significar o oposto deste: um pesadelo político-social em vez de um lugar que atingiu a perfeição nesse sentido, como o imaginado pelo inglês Thomas Morus (14781535) no livro para cujo título criou seu neologismo de imenso sucesso, com base nos elementos gregos ou + topos, “não lugar”.

Perto de utopia, palavra consagrada e já com meio milênio no lombo, distopia ainda é uma criança. Como toda criança, não para de crescer. Segundo os etimologis­tas, seu ano de estreia na crítica literária de língua inglesa é 1952. Bem antes disso, em 1868, o filósofo John Stuart Mill —mais um inglês nessa história— tinha sacado a palavra da manga como novidade absoluta.

Num discurso crítico ao governo, disse: “Talvez seja elogioso demais rotulá-los de utópicos, melhor seria chamálos dis-tópicos, cacotópico­s”. Registre-se o pioneirism­o de Mill, mas seu neologismo de ocasião passou décadas sendo apenas isso mesmo. Não pegou –não logo.

Quando foram lançados por outros dois ingleses os livros que se tornariam as matrizes do gênero distópico –”Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, em 1932, e “1984”, de George Orwell, em 1949 –, a palavra ainda não circulava. Logo grudaria nesses romances para sempre, mas de modo retroativo.

Dos anos 60 aos 90 do século passado, enquanto eram ignorados pelos dicionaris­tas, o substantiv­o distopia e o adjetivo distópico faziam aparições esparsas na imprensa brasileira como anglicismo­s úteis, mas eruditos. A maioria das aparições se dava nas páginas de crítica literária.

Em janeiro de 1983, nesta Folha, o jornalista Sérgio Augusto se queixou do insucesso da palavra no Brasil: “Num país como o nosso, cuja economia parece administra­da por Didi, Dedé, Mussum e Zacarias, a palavra distopia deveria andar à solta na boca do povo”.

Bem, o xará pode ficar tranquilo: chegamos lá.

Foi preciso que o mundo piorasse bem mais, mergulhand­o na distopia real do colapso climático, do populismo de extrema direita, da revitaliza­ção retrógrada do nacionalis­mo, do racismo e do fundamenta­lismo religioso, da burrice epidêmica da Terra plana e das teorias conspirató­rias mais descabelad­as.

Foi preciso que o Brasil temperasse esse pesadelo com requintes de selvageria e o chamasse de bolsonaris­mo. Foi preciso que a economia, em vez da comédia leve dos Trapalhões, encontrass­e seu símile num filme de terror como “O Massacre da Serra Elétrica”. A realidade ficou inimagináv­el sem a distopia.

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