Folha de S.Paulo

‘Aline’ se revela grata surpresa ao fazer humor com Céline Dion

Valérie Lemercier dirige e protagoniz­a longa que desafia o verossímil entre brincadeir­as com a cantora canadense

- Sérgio Alpendre

CINEMA

Aline: A Voz do Amor

★★★★★

França, Canada, Bélgica, 2020. Direção: Valérie Lemercier. Com Valérie Lemercier, Sylvain Marcel, Danielle Fichaud. Em cartaz. 16 anos

Uma das possibilid­ades do cinema é a da criação a partir de situações ou pessoas reais. Com “Cidadão Kane”, por exemplo, Orson Welles e o roteirista Herman Mankiewicz tiveram como inspiração o magnata da comunicaçã­o William Randolph Hearst, que ficou furioso ao se reconhecer em uma série de circunstân­cias mais ou menos criadas para o filme.

Longe de atingir o mesmo estatuto, no filme “Aline: A Voz do Amor”, a atriz e cineasta francesa Valérie Lemercier revela bom humor e talento de encenação ao fazer uma biografia da cantora canadense Céline Dion, aqui metamorfos­eada em Aline Dieu.

Não há bem um disfarce. A realizador­a assume ter criado situações inspiradas na vida e na obra da famosa cantora, que inicialmen­te lançava discos em francês, passando logo a gravar discos também em inglês, visando o enorme mercado dos Estados Unidos.

Para salientar o efeito cômico, contudo, a própria Lemercier interpreta a cantora desde a infância, criando efeitos engraçados de inadequaçã­o entre sua figura de meia-idade e o comportame­nto tipicament­e infantil de uma criança de 12 anos. É uma maneira de dizer que desde menina a cantora já possuía uma voz privilegia­da, goste-se ou não do tipo de música que ela representa.

É também uma bem-vinda liberdade, que deve desesperar os “senhores verossímei­s”, como dizia Hitchcock. Nestes tempos em que a veracidade é perseguida a todo custo, muitas vezes em detrimento do imaginário, gerando uma enormidade de filmes sem alma, o risco corrido por Lemercier é louvável.

Há piadas com a mudança de nome. Quando o agente chama a cantora criança de Céline, é corrigido prontament­e pela mãe, vivida pela divertida Danielle Fichaud.

Há também as piadas com o francês que se fala em Québec —vide as inúmeras repetições da maneira de falar Vaticano. Ou a deliciosa brincadeir­a com o nome do primeiro disco de Céline Dion, “La Voix du Bon Dieu”, ou a voz do bom Deus, que no filme vira “La Voix du Bon Dion”, cruzando o real e o fictício.

Esse humor, que nunca parece ser realmente ofensivo a Céline Dion, compensa as cenas ridículas em que os responsáve­is por fazer estourar a lenda, como também seus parentes, entreolham-se em aprovação ao ver a cantora em performanc­e pública.

Esse tipo de cena de reação, que encontrou há alguns anos o máximo de seu potencial para o patético em “Cisne Negro”, de Darren Aronofsky, subestima a capacidade do público de reconhecer se a voz é mesmo bela ou não.

O filme decai também quando a cantora se torna fenômeno mundial de vendas. Nesse momento, o talento de Lemercier e a simpatia de Sylvain Marcel, que interpreta seu marido e agente, seguram as cenas cotidianas da estrela e as altas doses de sacarina das baladas que ficaram famosas.

Felizmente, Lemercier intercala essas músicas melosas com canções pop tocantes como “Going to a Town”, de Rufus Wainwright, e “You Make me Feel (Mighty Real)”, na versão de Jimmy Somerville, além de dar o devido destaque a “Ordinaire”, imponente obra do repertório mais recente de Céline Dion —suas músicas são cantadas no filme por Victoria Sio.

“Ordinaire”, aliás, é a escolhida para encerrar o filme e pode conter também uma mensagem da diretora porque a letra diz “eu não ligo para a crítica; quando canto, é para o público”. No francês original, “critique” rima com “public”.

Estaria Lemercier respondend­o às críticas que recebeu por seu longa anterior, o fraco “50 São os Novos 30”, da mesma maneira que Céline Dion respondia a seus críticos? Seja o que for, ajuda o filme a ter no todo uma aparência bem digna.

Por Aline, Valérie Lemercier venceu o merecido César de melhor atriz. Como diretora, alterna bons e maus momentos. Quando inspirada, pode fazer uma comédia simpática como “Quadrille”, seu primeiro longa, de 1997, ou este surpreende­nte “Aline, o sexto e último que dirigiu até então.

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Divulgação Valérie Lemercier em cena do filme ‘Aline’

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