Folha de S.Paulo

Mandar matar: tem certeza?

Mesmo com adendos recentes à lei, estamos longe de uma equidade real

- Maria Homem Psicanalis­ta e ensaísta, com pós-graduação pela Universida­de de Paris 8 e FFLCH-USP. Autora de “Lupa da Alma” e “Coisa de Menina?”

Antes você podia matar. Se você tinha muito poder, podia matar ou mandar matar. Primeiro porque a vida não tinha tanto valor mesmo. Segundo, porque se supunha que alguns tinham o direito sobre a vida e a morte. Por exemplo, o soberano.

As pessoas eram diferentes em seu estatuto, o que significav­a que algumas eram humanas e outras sub-humanas, isto é, inferiores e eliminávei­s. Os superiores tinham o direito de decidir quem deveria permanecer com a vida, e decidir também todas as outras leis. Isso parece estranho à nossa sensibilid­ade moderna, mas era assim.

Aos poucos e talvez lentamente demais, fomos mudando essa concepção. Dois deslocamen­tos paralelos foram se realizando. Esta vida (terrena) é única e insubstitu­ível. E todos somos igualmente humanos. No entanto, apesar de tábuas de leis religiosas, de códigos de Hamurabi, de direitos romanos e de revoluções liberais, para ficar nas últimas grandes viradas, às vezes temos a sensação de ainda estarmos na “lei da selva” (e olha que as florestas têm um nível muito superior de auto-organizaçã­o comparado ao nosso).

Mesmo com os adendos mais recentes, que vão incluindo parcelas antes excluídas da lei, estamos longe de uma equidade real, com diversidad­e, inclusão e demais palavras que, vejam só, estão até na moda.

O curioso é que no Brasil de 2022 parece que esse processo de ampliação inevitável do escopo da lei se faz com mais lentidão e muito mais resistênci­a. A lei moderna tem por função preservar a vida e partilhar o Direito ao maior número possível de seres. A essência da lei é barrar o gozo do privilégio. O que é contra a lei? É tudo o que você gostaria de continuar fazendo para poder gozar em cima dos outros.

Que chatice, né? Pois é. Bem-vindo a uma Terra redonda e perecível, com 8 bilhões de pessoas, em que se supõe que todos tenham direito a formas de sobreviver dignamente sobre ela. Assim, não pode explorar o outro de tal forma que ele morra ou que a vida dele seja um inferno. Não pode tirar terra, comida e corpo do outro. Não pode mais mandar matar. Virou crime.

Quanto mais poder você tinha, mais impune você saía dessa história. Hoje já está ficando complicado. Por exemplo, tem índio, seringueir­o, jornalista, freira, pesquisado­r, líder, vereadora que começam a investigar coisas que você não quer que apareçam. Você manda matar. Ixi, vai ter placa e homenagem e gente perguntand­o quem mandou matar essa gente. Você quebra a placa e passa um trator, real e simbólico sobre tudo isso que está aí. E não é que de novo o tiro saiu pela culatra e a foto deles circula o mundo e chega até na Tower Bridge, um dos centros do multipolar império do Ocidente?

Parabéns, você conseguiu chamar atenção para você mesmo e os companheir­os dessa velha visão de mundo: vamos extrair o máximo da natureza e dispor da vida dos outros, tudo fora da lei. Não, não pode. Você está inconforma­do que o mundo mudou e você grita que o futuro da nação é fazer esses trambiques. Não, não é.

Tem que discutir de forma ampla e transparen­te os modelos de negócio para o país. E não adianta fazer ameaça de usar a força para descer goela abaixo essa sua visão. Ela é velha, ela é o passado. Agora tem lei, democracia, eleição, tem um jogo sendo jogado. Você já perdeu. Pode juntar os amigos em cima de motos e motosserra­s para irem fazer barulho com você, bem onde os heróis foram mortos, mas não vai adiantar. Vai ficar patético, como uma criança que foi pega fazendo coisa errada e começa a berrar, tapando os ouvidos para fugir da realidade. Pode espernear e quem sabe até armar mais uma ditadura por um par de anos. Você vai perder no final.

Não sei se você entendeu, mas faz uns séculos que você perdeu o jogo. E quem estiver te acobertand­o vai sentir muita vergonha no final.

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