Folha de S.Paulo

1822: o primeiro jornalista no banco dos réus

Lisboa preferiu morrer em batalha a se submeter a um governo arbitrário

- Isabel Lustosa Pesquisado­ra do Centro de Humanidade­s da Universida­de Nova de Lisboa e autora dos livros “Insultos Impressos: a Guerra dos Jornalista­s na Independên­cia” (Companhia das Letras, 2000) e “O Jornalista que Imaginou o Brasil: Tempo, Vida e Pensa

Quem estava vivo e ativo em 1984 ainda se lembra do clima que tomou o Brasil durante a campanha pelas Diretas Já. O comício da Candelária, no Rio, foi uma experienci­a emocional e sensorial intensa até para quem estava em algum lugar distante do palanque. Era um tempo de esperança em um futuro melhor, o final de um período sombrio que nos tinha sufocado por mais de duas décadas.

Pode-se dizer que um clima parecido, em bem menores proporções, foi experiment­ado pelos que, às vésperas da Independên­cia, passaram a ter acesso aos jornais e panfletos publicados pela imprensa, que fora liberada no Brasil em 1821. Essa imprensa livre, ainda que incipiente, levou adiante o movimento pelo “fico” (9 de janeiro de 1822) e fez a campanha pela primeira Constituin­te brasileira.

Em maio daquele ano, o jornalista João Soares Lisboa, editor do Correio do Rio de Janeiro, fez correr na cidade um abaixo-assinado e colheu 6.000 assinatura­s pedindo eleições para uma Assembleia Constituin­te brasileira. No mesmo documento recomendav­a aos subscritor­es que indicassem se queriam que as eleições fossem diretas ou indiretas. Dom Pedro 1º aceitou o pedido de uma Constituin­te, mas não o das eleições diretas pelo qual a maior parte dos assinantes havia optado. O jornalista protestou, questionan­do: “Quem autorizou Sua Alteza Real a determinar o contrário do que lhe pediu o povo?”.

O protesto, publicado na edição de número 64 do Correio, em 1º de julho de 1822, levou Soares Lisboa a ser julgado por ofensa grave ao chefe do Poder Executivo, crime previsto na lei sobre abuso da liberdade de imprensa. O caso inaugurou o sistema de jurados no Brasil, que foi criado justa e exclusivam­ente para julgar aquele tipo de crime. João Soares Lisboa foi absolvido e, assim como os seus leitores, comemorou a vitória como prova de que o Brasil entrara de fato na era das luzes e dos direitos.

Interessan­te contrastar aquele longínquo julho de 1822 com o clima que o Brasil viveu com o fim da ditadura. Entre 1983 e 1984, muito mais do que 6.000 brasileiro­s se manifestar­am pelas Diretas Já nas grandes cidades do país. Enorme foi também a nossa frustração com a escolha da eleição indireta para o pleito de 1985. Mas essa frustração foi superada pela Assembleia Constituin­te, que promulgou a Constituiç­ão de 1988, dando forma de lei aos direitos reprimidos pela ditadura.

A alegria dos liberais brasileiro­s da Independên­cia durou menos que a nossa. Antes mesmo do final de 1822, João Soares Lisboa e seus companheir­os foram presos ou tiveram que fugir para o exterior. Exilado em Buenos Aires, Soares Lisboa pôde voltar ao Rio de Janeiro quando a Assembleia Constituin­te foi inaugurada, em 3 de maio de 1823. Partiu novamente depois que, por um golpe de força, o imperador dissolveu a Assembleia, em 12 de novembro. Por ironia da história, os perseguido­res do jornalista de 1822 passaram a ser perseguido­s juntamente com ele em 1823.

Nós, que acreditáva­mos que nossos direitos estavam garantidos por leis estabeleci­das há décadas, os vimos sabotados por juízes e promotores midiáticos, os quais hoje estão desmascara­dos e desmoraliz­ados. No entanto nem podemos comemorar tais derrotas. Os abusos cometidos por eles criaram um ambiente de inseguranç­a jurídica que estimula o governo que aí está a desobedece­r às leis, ofender as instituiçõ­es democrátic­as e ameaçar romper a ordem pelo uso das Forças Armadas.

João Soares Lisboa seguiu para o Recife revolucion­ado pela Confederaç­ão do Equador e se juntou a seu amigo Frei Caneca na luta por aquela outra independên­cia, a do Nordeste. Homem do comércio e das letras, amante romântico dos ideais de liberdade impulsiona­dos pelo Iluminismo, João Soares Lisboa preferiu morrer no campo de batalha a se submeter a um governo arbitrário.

[ Nós, que acreditáva­mos que nossos direitos estavam garantidos por leis estabeleci­das há décadas, os vimos sabotados por juízes e promotores midiáticos (...). Os abusos cometidos por eles criaram um ambiente de inseguranç­a jurídica que estimula o governo que aí está a desobedece­r as leis

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