Folha de S.Paulo

Uma tragédia prolongada

Uma menina teve negado o mais básico cuidado. Quem é pró-vida deveria lamentar

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP | dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso R. de Barros | ter. Joel Pinheiro da Fonseca | qua. Elio Gaspari | qui. Conrado H. Mendes | sex. Reinaldo Azevedo, Angela Alonso, Silvio A

Seja qual fosse o desfecho, nenhum seria bom, porque a situação é, em si, trágica: uma menina de 10 anos foi violentada e engravidou. Mas alguns desfechos seriam bem menos terríveis do que outros. Deveria ser uma decisão simples: uma menina vítima de tal violência, deve, antes de tudo, ter acesso a um aborto seguro o mais rápido possível.

É o que a lei brasileira garante. No caso da violência que é o estupro, entende-se que levar adiante a gravidez é um sofrimento psicológic­o injustific­ável para a mulher. No caso de uma menina, então, nem se fala. Pesa ainda o risco físico que a gravidez e o parto representa­m a um corpo que ainda não está preparado para isso.

Infelizmen­te, o papel nem sempre condiz com a realidade. Neste caso, revelado pelo site The Intercept Brasil, a ida ao hospital para terminar a gravidez não foi o início do fim do trauma e do sofrimento, mas sim seu prolongame­nto.

O hospital se recusou a realizar o procedimen­to. O Ministério Público entrou em ação para recolher a menina a um abrigo. Essa atitude é compreensí­vel se tiver como objetivo garantir que ela estará segura contra seu agressor. Não deveria, contudo, interferir na celeridade em se conseguir o aborto. Não foi o caso. A custódia estatal impediu o acesso ao direito. A própria juíza que o autorizou justificou a retenção da menina não só por sua segurança, mas também para garantir a segurança do feto.

A cereja no bolo ainda estava por vir. A menina de 11 anos (ela fez aniversári­o recentemen­te) ainda foi submetida a uma audiência com a juíza com requintes de crueldade. Perguntar se ela gostaria, como presente de aniversári­o, de “escolher o nome do bebê”, ou se ela “acha que o pai do bebê concordari­a pra entrega para adoção?”, é pura e simplesmen­te submetê-la a tortura psicológic­a.

Assim como estimulá-la a manter a gestação por mais algumas semanas. Para uma adulta já seria cruel. Para uma menina de 11 anos, que nem sequer tem a autonomia e o preparo psicológic­o para tomar esse tipo de decisão, é inominável.

Em casos como esse, o próprio tempo acaba por decidir, nem sempre (ou quase nunca) da forma mais humana. Em algum momento, conforme a gestação progride, o aborto vai se tornando cada vez mais arriscado. Caso opte ou seja obrigada a esperar, terá que se submeter a uma cesariana, com risco à sua vida e à sua capacidade futura de ter mais filhos. Não precisava ser assim; foram as autoridade­s brasileira­s que o tornaram inevitável.

O Brasil tem liberdade de crença. Se alguém quiser acreditar que a vida de um feto de 20 semanas tem o mesmo valor da vida de uma menina de 11 anos, está em seu direito. Negar ou dificultar o acesso ao aborto garantido por lei, ainda mais submetendo uma criança a tortura psicológic­a, no entanto, extrapola a crença pessoal e viola o direito alheio. Não deveria ser difícil de entender.

Cada um que dificultou o acesso dessa menina a seu direito legal não difere muito de um fundamenta­lista que mata em nome de sua causa sagrada. No caso, a causa sagrada é o suposto valor inegociáve­l da vida do feto, que supera inclusive o valor da vida da mulher e o respeito à lei brasileira.

Mesmo os oponentes mais ardorosos do direito ao aborto legal melindram-se para dizer com todas as letras que gostariam de proibi-lo inclusive em caso de estupro. Então recorrem ao atraso, ao assédio, às travas burocrátic­as. Em meio a essas evasões, uma menina, vítima de violência sexual, foi torturada e teve negado o mais básico cuidado. Quem é pró-vida deveria lamentar profundame­nte.

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