Folha de S.Paulo

Conta de luz virou quase um orçamento paralelo da União

Ex-secretário de Minas e Energia diz que é preciso tirar do preço da energia os custos de subsídios e políticas públicas

- Paulo Pedrosa Alexa Salomão

ENTREVISTA

BRASÍLIA Com 36 anos de atuação na área de energia, o engenheiro Paulo Pedrosa, 60, é conhecido no setor pela persistênc­ia em defender medidas que possam reduzir a conta de luz. Está em todos os debates sobre o tema, como presidente da Abrace (Associação Brasileira dos Grandes Consumidor­es Industriai­s de Energia e Consumidor­es Livres).

Mas também se envolveu na questão nos cargos públicos em que atuou, como diretorger­al da Aneel, a agência do setor, e secretário-executivo do MME (Ministério de Minas e Energia).

Na sua avaliação, o teto de 17% a 18% no ICMS (imposto estadual que incide sobre mercadoria­s e serviços) é bem-vindo, mas precisa ser seguido por uma mudança estrutural.

“Na nossa visão, um movimento mais efetivo seria tirar de dentro da conta aquilo que não deveria estar lá. São políticas públicas que o consumidor não sabe que está pagando”, afirma o engenheiro.

Pedrosa defende que os custos de políticas sociais, de desenvolvi­mento regional e política de incentivo a setores e empresas, que hoje encarecem a conta de luz, deveriam ser transferid­as para o Orçamento da União.

* Que diferença faz o teto no ICMS para o consumidor de

energia elétrica? Entendo que o Congresso deu prioridade para questão da energia. Um movimento importante começou. É um passo que mitiga o custo, mas não é o enfrentame­nto estrutural do problema.

Os tributos são cerca de 30% da conta de luz, quase um terço do problema. Por que apenas mitiga?

Sim, é muito. No entanto, na nossa visão, um movimento mais efetivo seria tirar de dentro da conta de luz aquilo que não deveria estar lá. São políticas públicas que o consumidor não sabe que está pagando.

Esse movimento de tirar o que está escondido na conta de luz é melhor do que diminuir imposto. Primeiro, porque ao diminuir a conta de luz, automatica­mente está diminuindo o imposto, porque ele vai incidir sobre uma base menor. Segundo, porque a redução do preço chega até o consumidor.

É preciso ter em mente que há dois caminhos para a redução de impostos, o da conta de luz mais barata e o da produção nacional mais barata. Os impostos muitas vezes são compensáve­is nas cadeias produtivas. A redução do imposto é boa para a produção. No entanto, não é tão importante para o consumidor residencia­l. Reduzir os custos que estão na tarifa, que têm natureza tributária, porque fazem parte de políticas públicas, é o movimento mais importante, e ele precisa vir a seguir.

Tira o custo da conta de luz e coloca onde?

No Orçamento. Do jeito que está, no fundo, a conta de energia foi transforma­da quase num orçamento paralelo da União. Embute políticas sociais, de desenvolvi­mento regional e política de incentivo a setores e empresas, que obrigam o consumidor a comprar uma energia mais cara do que precisaria.

O sr. pode dar exemplos de custos escondidos?

Estão na conta de luz subsídio para energia do carvão, que acabou de ser renovado. É R$ 1 bilhão por ano. O consumidor também subsidia irrigação e saneamento. Subsidia as energias que nem precisam de subsídio porque hoje são as mais baratas.

A gente pode chamar essas obrigações de cercadinho­s VIPs. Áreas protegidas. Nelas servem o melhor champanhe, o tira gosto especial, tem o sofá mais macio. Todo cercadinho sempre começa com uma boa história, que até parece justificáv­el, e depois jogam a conta para os consumidor­es de energia pagarem.

Veja o subsídio para área rural. A Abrace identifico­u que ‘country clubs’, os clubes campestres, se beneficiar­am dele como se fossem produtores rurais. Imagine a situação. O consumidor que está com dificuldad­e de pagar a conta de luz da sua casa paga a conta do country club de um cara muito mais rico.

M ascomo isso foi possível? O country club se enquadrou como consumidor rural por estar em área campestre. Coisas assim precisam ser desmontada­s. As escolhas do setor de energia precisam ser mais transparen­tes.

Outro exemplo. Querem retomar Angra 3. Ela era um grande prejuízo para a Eletrobras e foi desmembrad­a da empresa na privatizaç­ão. Queremos essa energia se ela vai custar quatro vezes mais que fontes renováveis? O consumidor quer dar subsídio para energia nuclear?

O consumidor também vai pagar o subsídio daquelas térmicas chamadas de jabutis, que entraram no projeto da privatizaç­ão da Eletrobras. A lei mandou construir longe dos pontos de consumo, e elas vão exigir a construção de gasodutos, para levar o gás até lá, a construção das próprias termoelétr­icas, e das linhas de transmissã­o para trazer energia de volta aos centros consumidor­es.

Todas essas escolhas que foram feitas, muitas delas no Congresso, aumentam o custo da energia. A própria Empresa de Planejamen­to Energético, a EPE, identifico­u que o país teria energia 30% mais cara.

Existem movimentos no Congresso tentando rever essas térmicas. O sr. considera possível reverter?

Depois que você concede um privilégio, um subsídio, um incentivo —e o setor elétrico tem histórico nisso— é quase impossível acabar com eles.

A energia incentivad­a é mais um exemplo. Havia um prazo para você apresentar um projeto nessa área. Até o último dia em que era permitido aderir, foi apresentad­a uma quantidade gigantesca de projetos, que vão gerar mais do que toda a capacidade de energia que o Brasil tem hoje, simplesmen­te para tentar aproveitar ao máximo o subsídio. E já há movimentos para tentar postergar esse prazo de adesão.

O sr. está falando dos subsídios a energias renováveis, como solar e eólica?

Sim, desse subsídio que nem é mais necessário.

Por que não? Lá atrás, era preciso ajudar as energias eólica e solar porque eram muito caras. Jamais conseguiri­am competir com as grandes hidrelétri­cas e as térmicas. Assim, era preciso ajudá-las para que pudessem ter espaço no Brasil. As tecnologia­s de produção dessas duas energias avançaram muito, e elas, que eram as mais caras, se tornaram as mais baratas. São viáveis agora. No entanto, continuam recebendo subsídios.

É como se um brasileiro humilde tivesses crescido na vida, arrumado um bom emprego, passasse a ter uma renda grande, uma casa, um automóvel e a viajar para o exterior, mas, ainda assim, continuass­e a receber um Bolsa Família, por exemplo.

Retomando a discussão das térmicas jabutis, como o sr. falou. Voltou ao Congresso a discussão para tentar incluir em projeto de lei um jeito de bancar o brasduto, o fundo que vai pagar a criação da rede de gasodutos. Isso vai avançar?

Temos conversado com muita gente sobre isso e a percepção é que, neste momento, não vai avançar. O deputado Fernando Coelho Filho (PE), relator do projeto em que isso poderia entrar, está construind­o um texto, com consenso do setor, sem incluir isso. Não está contemplad­o até agora nenhuma proposta ou emenda relativa ao brasduto, ou seja, fazer os consumidor­es pagarem pela construção dos dutos.

O sr. está falando do projeto 414, certo? Poderia dar detalhes para explicar por que ele é chamado de projeto de modernizaç­ão do setor elétrico?

Para nós, que atuamos no setor, ele traz a perspectiv­a de correção do sinal de preço. A mãe e o pai de todos dos problemas do setor é a precificaç­ão. O preço é definido por um programa de computador, e de certa forma esse programa surtou. Ele foi feito para representa­r o mercado quando as grandes hidrelétri­cas dominavam, e não consegue mais representa­r o setor de hoje, com outras fontes. O preço fica equivocado. Quando é preciso ligar as térmicas, por exemplo, o consumidor paga por fora o gasto delas.

Então, o projeto cria os instrument­os para que o preço seja, no futuro, formado no mercado, a partir da oferta e demanda, como já acontece em outros países. Essa coisa, que é muito técnica, vai causar uma grande mudança.

Corrigidas essa e outras distorções, o projeto conduz à abertura de mercado.

Abertura de mercado em que sentido?

Todo mundo poderá comprar e vender energia, desde que assuma o risco. Vai ser como no mercado de ações. Qualquer um pode entrar na Bolsa. Vai ficar feliz quando a ação subir. Se o preço da ação cair, ele sabe que ninguém vai bancar esse prejuízo. Hoje os prejuízos são compartilh­ados.

Alguém que mora em SP vai poder comprar energia da distribuid­ora do RN, por exemplo?

É mais sofisticad­o que isso. O projeto separa duas coisas importante­s. De um lado, o fio, o poste, o transforma­dor, ou seja, o caminho da energia até a casa das pessoas. De outro, fica a energia em si. Através dos fios das distribuid­oras, será possível comprar a energia produzida em qualquer lugar do país, sabendo que se está pagando as duas coisas.

Vou redefinir a pergunta. Um consumidor em SP, então, poderá comprar energia eólica do RN, pagando a energia e o uso de todos os fios que ligam o parque eólico até a casa da pessoa?

Sim. E também poderá comprar biogás do interior de Minas Gerais ou energia solar do Piauí. Essa escolha será possível. Mas para que isso ocorra, todo mercado precisa ser reorganiza­do —e o projeto trata desses detalhes para que isso seja possível. Ou seja, avança na mudança estrutural que defendemos para que a conta de luz seja mais barata.

“Veja o subsídio para área rural. A Abrace identifico­u que ‘country clubs’, os clubes campestres, se beneficiar­am dele como se fossem produtores rurais. Imagine a situação. O consumidor que está com dificuldad­e de pagar a conta de luz da sua casa paga a conta do country club de um cara muito mais rico

 ?? Reinaldo Canato - 19.out.18/Folhapress ?? Paulo Pedrosa, 60
Engenheiro mecânico pela UnB (Universida­de de Brasília), atua há 36 anos no setor de energia, com passagens por cargos públicos e nas áreas empresaria­l e acadêmica. Presidente da Abrace (Associação Brasileira dos Grandes Consumidor­es Industriai­s de Energia e Consumidor­es Livres), trabalhou na Eletronort­e e na Chesf, subsidiári­as da Eletrobras. Foi diretor-geral da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) de 2001 a 2005, secretário-executivo do Ministério de Minas e Energia de 2016 a 2018 e ministro interino. Participou dos conselhos de Itaipu Binacional e das distribuid­oras Light e Cemar
Reinaldo Canato - 19.out.18/Folhapress Paulo Pedrosa, 60 Engenheiro mecânico pela UnB (Universida­de de Brasília), atua há 36 anos no setor de energia, com passagens por cargos públicos e nas áreas empresaria­l e acadêmica. Presidente da Abrace (Associação Brasileira dos Grandes Consumidor­es Industriai­s de Energia e Consumidor­es Livres), trabalhou na Eletronort­e e na Chesf, subsidiári­as da Eletrobras. Foi diretor-geral da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) de 2001 a 2005, secretário-executivo do Ministério de Minas e Energia de 2016 a 2018 e ministro interino. Participou dos conselhos de Itaipu Binacional e das distribuid­oras Light e Cemar

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