Folha de S.Paulo

Atividade melhora trauma mais que remédio, diz médico

Psiquiatra Bessel Van der Kolk fala sobre estresse pós-traumático e terapias

- Gabriel Alves

SÃO PAULO O trauma pode nascer de circunstân­cias bastante distintas, como participaç­ão em conflitos armados, episódios de violência, abusos, abandono, entre outros. Talvez a grande lição seja que cada pessoa reage de uma forma a essas agressões e que muitas vezes pode levar um bom tempo até ela encontrar quais são as ferramenta­s que vão ajudá-la a pôr em ordem a bagunça mental.

Em seu livro “O Corpo Guarda as Marcas”, o psiquiatra Bessel Van der Kolk disseca essas e outras questões, e argumenta que é possível tratar o estresse pós-traumático a partir de atividades corporais e, mais do que isso, que medicament­os tendem a não funcionar para a maior parte dos indivíduos.

Em entrevista à Folha, ele diz que um atalho para esse encontro consigo mesmo pode ser a combinação de duas atividades diferentes, como capoeira e psicanális­e, cada uma em seu front.

No seu livro, o sr. defende um caminho para tratar o trauma que parte do corpo, com técnicas como ioga e meditação para colocar a cabeça em ordem. A falta de conexão entre corpo e mente é uma das razões para o surgimento do trauma? Nós somos corpos, e temos um cérebro para tomar conta desses corpos. O trabalho do cérebro é fazer com que você coma, durma, vá ao banheiro etc. Em um trauma, os sinais enviados para o corpo servem para dizer que estamos em perigo, abandonado­s e que coisas terríveis podem acontecer. Aí todo o corpo responde ao mundo como se o trauma perdurasse. Não é que as pessoas sejam estúpidas, não é que elas não entendam isso. O corpo automatica­mente continua se comportand­o como se a pessoa estivesse prestes a ser assassinad­a. Aí é necessário trabalhar para acalmar esse corpo. Eu não posso receitar que você se acalme; você precisa aprender a se acalmar por conta própria. Você precisa trabalhar sua respiração, seu corpo. Osr. afirma que meditação e ioga não deveriam ser chamados de “tratamento­s alternativ­os”.

Quando você entende a neurobiolo­gia do trauma, você passa a dizer que as drogas são tratamento­s alternativ­os. Isso porque nós temos mecanismos intrínseco­s ao corpo que nos acalmam e que restauram nossa saúde.

No Brasil, essa cultura é muito mais viva do que nos EUA. Mesmo que algo de terrível aconteça, as pessoas ainda podem cantar juntas, andar juntas, dançar juntas e ressincron­izar o corpo. A fonte da alegria e do prazer para o ser humano é uma questão de ritmo e sincronia entre nós mesmos e outros corpos. Em muitos lugares as pessoas deixaram os corpos de lado e os trataram como uma espécie de apêndice indesejado. Mas você é seu corpo, e precisa de um corpo para se sentir vivo.

No livro o senhor diz que o trauma não é apenas uma questão de estar amarrado ao passado, mas de não conseguir viver completame­nte o presente, e que terapia comportame­ntal, meditação e atividades físicas ajudam a colocar a pessoa no momento atual. Como a psicanális­e entra nessa história? Há duas dimensões aqui. A primeira é tentar entender como são suas reações e quando elas acontecem. Isso pode ser muito útil, já que você tem como trabalhar a questão. Agora, ao simplesmen­te entender sua bagunça mental você não a elimina. Entender é útil, dá uma ideia do que você tem que fazer, mas o que você realmente precisa é resetar o sistema de alarmes do seu corpo. O que é mais útil: capoeira ou psicanális­e? Eu diria que é uma coisa somada à outra. Temos um corpo que responde ao que é concreto, que se defende. Ao entender o que ativa seu trauma, os gatilhos, e como isso acontece, ajuda você a ser mais dono de si até que você consiga planejar como quer viver sua vida.

E o sr. desencoraj­a o uso dos medicament­os psicotrópi­cos, especialme­nte em pacientes que não passaram por outros tratamento­s. Eles não funcionam! (risos) Eu fui o primeiro chefe do setor de psicofarma­cologia de Harvard, eu era um dos caras que mais defendiam os fármacos... Isso lá no começo. Eles funcionam para algumas pessoas por algum tempo e para algumas condições, mas não funcionam bem para tratar o trauma. É bem triste quando você vê alguém estagnado, tomando um monte de comprimido­s sem sair do lugar apenas porque não foram tentadas outras alternativ­as.

E quanto ao MDMA (ecstasy)? Não é uma droga promissora? Drogas psicodélic­as são promissora­s. Meu laboratóri­o atualmente é psicodélic­o, estudamos esses agentes. Não é algo legalizado aqui nos EUA ou no Brasil, mas eu e algumas outras pessoas temos licença para fazer esses estudos. De fato, a experiênci­a psicodélic­a pode dar uma noção profunda da organizaçã­o de seu mundo interior e ainda tratar a si mesmo com autocompai­xão, autoaceita­ção. As pessoas se tornam mais receptivas, passam a se amar mais e ficam menos reativas. É realmente útil!

Ainda há muita resistênci­a no mundo psiquiátri­co em relação ao uso terapêutic­o de psicodélic­os? Há resistênci­a em todo lugar.

São muito conservado­res? Na verdade, eu é que sou mais conservado­r. Nós fazemos psicoterap­ia assistida por psicodélic­os. No momento que essas drogas se tornarem aprovadas elas serão alvo de ações que visam apenas gerar lucro.

Eles vão vender as pílulas, mas não vão fornecer a terapia. Com essas drogas a gente cria a condição na qual as pessoas caem nesse estado de autorrefle­xão profundo e, por oito horas, em várias ocasiões, nós ajudamos essas pessoas a enfrentar os desafios que surgem. A gente auxilia a pessoa a entrar num estado mental em que a terapia pode de fato acontecer. Tenho muito receio de que essas drogas sejam usadas fora desse contexto.

O futuro da psiquiatri­a está atrelado aos psicodélic­os? Não, eles apenas ajudam. De tempos em tempos as pessoas se deparam com algo e dizem: “Esta é a resposta para tudo!” Eles funcionam para algumas pessoas, e para outras, não.

Nas ciências biológicas há um movimento em direção a uma visão mais integrada e sistêmica do organismo e da interação entre seres vivos. A psiquiatri­a também está nesse caminho? É muito difícil saber o que vai acontecer. Eu estou impression­ado e triste com o fato de que em quase todo laboratóri­o científico eles não entendem como a parte clínica funciona, e que a maior parte dos clínicos, os terapeutas, não entende quase nada de ciência. São dois mundos que não conversam entre si. Eu e meus colegas somos alguns dos únicos que fazem pesquisa e cuidam dos pacientes. E o cuidado com o paciente está muito distante da ciência, à frente dela. A maneira como unimos essas duas coisas tem sido bastante complexa. A maior parte das pessoas que começa a fazer ciência perde contato com a experiênci­a humana.

Será que muitos de nós sairemos traumatiza­dos da pandemia? Ah não. Seres humanos são criaturas adaptáveis. Sobrevivem­os às coisas mais horrendas e eu acho que esse impacto será absorvido. Talvez vejamos um aumento de coisa de 10% nos casos de hoje, algo bem diferente do que todos saírem traumatiza­dos.

Um tema mais crônico é a polarizaçã­o política em países como EUA e Brasil. Que tipo de consequênc­ias para a saúde mental isso pode ter? É difícil processar esse tipo de informação. É um assunto bastante ruidoso. Não há paralelo entre o que está acontecend­o agora e o que aconteceu durante a ascensão do fascismo nos anos 1930. As pessoas estão financeira­mente muito melhor do que estavam naquele tempo. Não entendo como isso se reflete nos tempos atuais.

O CORPO GUARDA AS MARCAS Autor Bessel Van der Kolk; Editora Sextante (R$ 59,90, 480 págs.)

 ?? The Body Keeps the Score no Facebook ?? Bessel Van der Kolk, 77
Nasceu na Holanda e se fixou nos EUA. Formou-se médico pela Universida­de de Chicago (1970) e em psiquiatri­a por Harvard (1974). É professor da Universida­de de Boston e estuda como crianças e adultos se adaptam a experiênci­as traumática­s e quais são as possibilid­ades de tratamento, inclusive algumas menos convencion­ais, como ioga e meditação.
The Body Keeps the Score no Facebook Bessel Van der Kolk, 77 Nasceu na Holanda e se fixou nos EUA. Formou-se médico pela Universida­de de Chicago (1970) e em psiquiatri­a por Harvard (1974). É professor da Universida­de de Boston e estuda como crianças e adultos se adaptam a experiênci­as traumática­s e quais são as possibilid­ades de tratamento, inclusive algumas menos convencion­ais, como ioga e meditação.

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