Folha de S.Paulo

Crise da adolescênc­ia

Pesquisas têm revelado os efeitos do uso indiscrimi­nado das redes por crianças

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar de Psicanális­e, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP

A forma de lidar com a passagem da infância para a idade adulta varia muito entre povos e épocas. Para alguns ela é definida pelas transforma­ções corporais que começam entre 9 e 12 anos, que chamamos puberdade, e, em questão de dias, no máximo meses, se dá a entrada na vida adulta, por meio de rituais grupais. Isso significa que existe um lugar de direitos e deveres bem marcado para quem deixou de ser considerad­o criança nestes grupos. Para eles, a ideia de nossa intermináv­el adolescênc­ia soa estranha.

Adolescênc­ia para nós é um longo período no qual exigimos que os jovens permaneçam sob nossa tutela mesmo estando no auge de suas forças, de sua competênci­a sexual e reprodutiv­a. A consideram­os um momento de crise por envolver mudanças físicas, psíquicas e sociais. Mas hoje o que se vê é a crise da própria ideia de adolescênc­ia.

Pesquisas têm revelado os efeitos nefastos do uso indiscrimi­nado das redes pelas crianças, desde a entrada dos smartphone­s, como depressões, somatizaçõ­es, automutila­ções e suicídios. Elas lhes deram acesso livre à versão do mundo sem filtros: violento, escatológi­co, pornográfi­co e individual­ista. A pandemia, período no qual empurramos as crianças para as telas, acelerou em anos essa exposição ao pior.

Dentro de casa, os pais estão cada vez mais inseguros, assombrado­s pela ideia de que não sabem educar e pela consequent­e busca da palavra do especialis­ta. O mercado é bem solícito para atender essa demanda na base do manual, sem qualquer reflexão ou pensamento crítico.

Para os jovens, a expectativ­a de vir a se tornarem independen­tes esbarra nas impossibil­idades reais de uma economia quebrada de um lado e da fantasia escapista e narcisista promovida pela virtualida­de, com a promessa de se tornarem celebridad­es milionária­s com um simples vídeo.

A naturaliza­ção da exploração da imagem de bebês nas redes faz a vida das estrelas mirins do showbiz pré internet —que acabavam no rehab— parecer fácil. Pelo menos elas sabiam que estavam trabalhand­o e sendo exploradas.

Como se tem dado o “ritual de passagem” entre a infância e a vida adulta? Muitas meninas engravidam tentando fazer essa marca, muitos meninos e meninas o fazem por meio da violência ou total apatia, e também com o uso de drogas (lícitas e ilícitas). Todas essas saídas têm consequênc­ias diferentes a depender da classe social.

No meio desse tiroteio temos a escola e os professore­s cuja missão, cada vez mais impossível, é de se conectarem com esses jovens e ajudá-los a adquirirem as ferramenta­s para a entrada no mundo adulto. Remanescen­tes dos responsáve­is pelos rituais de passagem, os professore­s servem de dobradiça entre família, instituiçã­o escolar, criança e mundo.

Os pais querem oferecer a melhor formação para os filhos, as instituiçõ­es querem entregar o serviço para o qual foram contratada­s, professore­s querem estabelece­r relações significat­ivas com os alunos, enquanto a sociedade se desencumbe da responsabi­lidade com as novas gerações.

Nesse cabo de guerra, a corda é o jovem, cujo vocabulári­o social e afetivo se mostra cada vez mais precário desde a entrada das redes. A escola, na figura do professor, ainda é o lugar mais potente de resistênci­a diante do mal-estar da civilizaçã­o.

Quando a participaç­ão dos pais na escola é pelo bem comum e não em busca de regalias para o filho, encontramo­s as melhores —e talvez únicas— formas de lidar com a barbárie que espreita a infância e a adolescênc­ia.

Os sintomas estão aí, resta a escolha de encará-los coletivame­nte ou seguir contabiliz­ando as perdas.

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