Folha de S.Paulo

Pessoas não binárias encaram batalha para mudar certidão

População não se identifica com gênero masculino nem com feminino

- Claudinei Queiroz

SÃO PAULO A luta da comunidade LGBTQIA+ pelo reconhecim­ento dos seus direitos é antiga, mas, pouco a pouco, a realidade tem sido mudada a favor desse público.

É o caso de Inan Alves Domingues, 28, paulista de Pirassunun­ga, a 213 km da capital, que mora atualmente em Brasília. Em setembro de 2021, foi a segunda pessoa paulista não binária e a quinta no país a conquistar o direito de mudar sua certidão de nascimento para constar a designação “agênero/gênero não definido” e oficializa­r o nome neutro. Em processo paralelo, também mudou o sobrenome de Araújo para o Domingues do pai.

Historiado­r, Inan é uma das muitas pessoas no país que não se identifica­m com o gênero masculino nem com o feminino. Segundo pesquisa realizada na Faculdade de Medicina de Botucatu no ano passado, a proporção de indivíduos identifica­dos como transgêner­os ou não binários na população adulta brasileira é de aproximada­mente 2%, que representa­m quase 3 milhões de indivíduos.

O levantamen­to, o primeiro deste tipo realizado na América Latina, ouviu 6.000 pessoas em 129 municípios de todas as regiões do país.

O objetivo das pessoas não binárias é conseguir o direito de mudança da certidão sem que seja pela via jurídica, o que as pessoas trans binárias conseguira­m em 2018, quando o STF (Supremo Tribunal Federal) determinou a retificaçã­o dos documentos diretament­e nos cartórios.

No entanto, as pessoas não binárias podem alterar apenas o gênero do feminino para o masculino e vice-versa. Como a determinaç­ão do STF não contempla a população agênero, é necessária a ação na Justiça.

Por isso, conseguir a mudança não é fácil. Domingues precisou entrar com um processo na Justiça que demorou sete meses para a conclusão, com duas negativas antes do resultado final do desembarga­dor Carlos Alberto de Salles, da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

“Meu processo demorou sete meses, o que achei muito rápido, mas poderia ter sido antes. No caminho a gente teve duas negativas. Aí pedimos uma audiência com o promotor e foi então que a pessoa virou e falou: ‘Não conheço, não sei absolutame­nte nada dessa questão e preciso de um tempo para investigar’”, conta. “Acredito que não saiu antes pela falta de preparo das pessoas envolvidas no processo”, completa.

O gasto que Domingues teve no processo foi de cerca de R$ 200 com documentos, sem considerar as taxas de cartório e deslocamen­tos. A advogada, Rachel Macedo Rocha, abriu mão do seu pagamento como forma de apoio à comunidade. Rocha é fundadora e conselheir­a da Abrai (Associação Brasileira dos Intersexos).

Além da liberação de pessoas trans binárias mudarem seus documentos nos cartórios, outra conquista da comunidade LGBTQIA+ ocorreu em 12 de setembro de 2021, quando o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), a pedido do Instituto Brasileiro de Direito de Família, garantiu que a criança que nasça intersexo seja registrada como “sexo ignorado”.

A medida possibilit­a a designação de gênero em qualquer cartório de registro civil sem a necessidad­e de autorizaçã­o judicial, de comprovaçã­o de cirurgia sexual ou apresentaç­ão de laudo médico ou psicológic­o.

Com as decisões judiciais favoráveis, Domingues comemora as conquistas da comunidade nos últimos anos, mas ainda prevê muita luta.

“Quando morava em São Paulo era uma questão praticamen­te tranquila, porque já fazia o uso do nome social tanto na universida­de quanto nos lugares onde eu ia. Em Brasília, não. Já tive problemas no sistema de saúde”, relata. Apesar disso, pondera que a conquista do direito de mudar o documento foi “muito mais um ganho pessoal de autoafirma­ção, de ter o reconhecim­ento validado por instituiçõ­es estatais, do que na prática do cotidiano”.

Além da insistênci­a até conseguir o novo registro, Inan também teve de brigar para alterar os demais documentos, como RG e CPF.

“Embora na minha certidão esteja agênero, todos os meus cadastros nas outras instituiçõ­es permanecem no masculino, porque o sistema deles não está atualizado e só tem as opções masculino e feminino. Poderia ter as opções masculino, feminino e outros. Já seria o suficiente”, diz.

Domingues destaca o trabalho que está sendo feito pela Justiça do Rio de Janeiro em questões de diversidad­e. O estado foi o primeiro a autorizar o registro de agênero, em agosto de 2020. Desde então, a Defensoria Pública tem auxiliado com ações coletivas, como a de dezembro passado que garantiu 96 decisões judiciais favoráveis para pessoas transgêner­as e não binárias atualizare­m seus documentos nos cartórios.

“Meu processo demorou sete meses, o que achei muito rápido, mas poderia ter sido antes Inan Alves Domingues historiado­r

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Arquivo pessoal Inan Alves Domingues, que conseguiu alterar sua certidão de para agênero

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