A Vila Reencontro é inovadora para enfrentar a questão da população em situação de rua?
Para alojar pessoas em situação de rua, a Prefeitura de São Paulo anunciou a construção da Vila Reencontro, com 350 casinhas de 18 m² e 1.200 leitos, um custo de R$ 25 milhões, em um terreno municipal de 16 mil m², localizado no Bom Retiro.
A vila visa alojar provisoriamente (entre 12 e 18 meses) sobretudo famílias —com ou sem crianças— e idosos, que estejam vivendo em situação de rua há menos de dois anos. Além da moradia e assistência social, estão previstos serviços de saúde e capacitação profissional, unidades do Descomplica e restaurante Bom Prato, do governo do estado.
O secretário da assistência social, Carlos Bezerra, afirmou que o projeto se insere em uma “remodelação do acolhimento da população em situação de rua, ainda baseado nas décadas de 1980 e 1990, que não respondem à atualidade. Não dá mais para tratar da população em situação de rua como um bloco homogêneo de homens sozinhos dependentes de álcool e com problemas psiquiátricos”.
Ufa! Finalmente a gestão Ricardo Nunes começa a priorizar uma questão que escandaliza os paulistanos depois de dois anos de inoperância durante a pandemia, quando o poder público nada fez para evitar o despejo de inquilinos de baixa renda, que engrossou essa população, e assistiu, inerte, ela crescer 31%, as famílias vivendo nas calçadas, 111%, e as barracas, 230%.
Para enfrentar o problema, o Programa Reencontro, do qual a vila faz parte, tem três eixos: conexão, para criar vínculos e conhecer melhor essa população; cuidado, para oferecer serviços públicos, como acolhimento, inclusão produtiva e digital, dez mil vagas de Bolsa Trabalho e banheiros públicos; e oportunidade, para criar oportunidades para gerar a autonomia.
O programa está fundamentado na experiência internacional, adotando, no discurso, o princípio do “Housing First” (Habitação Primeiro, em inglês), desenvolvido no Canadá. No entanto, a Vila Reencontro e a falta de uma estratégia habitacional mostram que ele está longe dessa abordagem inovadora.
A novidade do modelo “Housing First” consiste na inversão da intervenção “em escada”, predominante em muitos países, inclusive no Brasil.
No modelo “em escada”, as pessoas devem receber tratamento até estarem aptas para viver de forma autônoma, em um continuum de serviços que começa em centros de alojamento e apenas culmina no acesso à habitação definitiva e independente. Mas nesse modelo, as pessoas ficam, majoritariamente, retidas em um ponto desse continuum e estacionam, sem saírem da situação de rua.
No modelo “Housing First”, o acesso à habitação é o ponto de partida para a recuperação, autonomia e inclusão social e não a última etapa da intervenção. As pessoas saem das ruas para uma moradia sem a exigência de participarem previamente em um programa de tratamento e reabilitação.
A habitação deve ser permanente, individualizada, estável (não transitória) e estar dispersa em zonas residenciais comuns da cidade, sem qualquer diferenciação, ou seja, disseminada na comunidade. As pessoas podem escolher, dentro de certos parâmetros, onde e com quem querem viver.
Os serviços sociais de apoio devem ser ajustados às necessidades dos participantes, em equipamentos separados da moradia. Os apoios devem ser individualizados para que as pessoas possam participar da comunidade, como os outros cidadãos.
A Vila Reencontro está longe do “Housing First” e próxima da intervenção em escada. A moradia é provisória e não está dispersa pelos bairros, gerando um gueto e uma discriminação que dificultará o acesso ao trabalho. Os moradores terão um endereço, mas será o da “vila da população em situação de rua”.
Sem dúvida, é muito melhor do que um albergue, garantindo privacidade e condições básicas de habitação, mas continua sendo uma instituição total. Para funcionar adequadamente e não se transformar em um espaço que reproduz precariedades, deverá ter regras rígidas de uso do espaço comum, vigilância e controle.
A solução arquitetônica e urbanística é desastrosa. Localizada ao lado da estação Armênia do metrô, desperdiça um terreno valioso que comportaria 2.000 unidades habitacionais de 32 m², para edificar 350 casinhas de 18 m², de baixa durabilidade, por R$ 4 mil/m², valor superior ao custo de projetos de habitação social verticais de excelente qualidade. Embora piloto, a experiência dificilmente poderá ser reproduzida, pois não haverá terrenos disponíveis. A escala da vila é mínima: atenderá apenas 3% da população em situação de rua. Por essa via, o acampamento de semteto visível na cidade não se modificará.
É louvável a prefeitura dar prioridade para essa população. Mas para adotar o modelo “Housing First”, é necessário formular uma estratégia habitacional mais inovadora e ousada.
Algumas sugestões. Criar um auxílio-aluguel com valor suficiente para a locação de uma moradia inserida nos bairros, para atender especificamente famílias que, na pandemia, foram viver nas ruas. Dar escala à modalidade de “República”, hoje existente, mas de pequeno alcance. Implementar o Serviço Social da Moradia, previsto no Plano Diretor, com projetos habitacionais voltados para grupos específicos, como idosos, mães solo, pessoas com deficiência, etc., atendendo não exclusivamente a população em situação de rua.