Folha de S.Paulo

‘CPI do Sertanejo’ pode vilanizar apoios locais

Com a criminaliz­ação de contratos de artistas por prefeitura­s, não é loucura pensar que todo o setor saia prejudicad­o

- Danilo Thomaz

Num trecho da tragédia musical “Gota d’Água”, de Paulo Pontes e Chico Buarque, a protagonis­ta Joana diz “quando eles virem invertida a correnteza,/ quero saber se eles resistem à surpresa/ quero ver como eles reagem à ressaca”.

A passagem, criada por um dos artistas mais perseguido­s pelo bolsonaris­mo, ilustra bem a reversão da sorte que vivem alguns dos artistas que, em 2018, se declararam bolsonaris­tas de primeira ordem depois que o cantor Zé Neto —da dupla com Cristiano— criticou artistas que usam verbas da Lei Rouanet e provocou a cantora Anitta por sua tatuagem.

Gusttavo Lima, a dupla Bruno e Marrone, Wesley Safadão e outros nomes mais conhecidos onde “o agro é pop” ganharam os holofotes pelos cachês cobrados de municípios do interior do país que, em alguns casos, chegavam a superar o novo teto de captação da Rouanet —R$ 500 mil —para verbas individuai­s.

Atédia12de­maiojáeram,segundo levantamen­to do UOL, 36 cidades —24 delas em Mato Grosso— investigad­as pelo Ministério Público naquela que passou a ser conhecida como a “CPI do Sertanejo”.

É preciso dizer também que a prática em si não configura crime e há inclusive uma lei, de 1993, que regula a medida. Criminaliz­ar o caso por princípio, como se fez com a Lei Rouanet, pode causar um grande mal para a produção cultural e artística do país.

Segundo levantamen­to feito por este jornal, 51,8% dos gastos dos governos em cultura vinham das cidades e 26,8% dos estados em 2018. A pesquisa teve como base as despesas empenhadas do Sistema de Informaçõe­s Contábeis e Fiscais do Setor Público, o Siconfi, do Tesouro Nacional.

Já os dados do IBGE de 2014 mostravam que 54,6% das cidades tinham políticas culturais ou desenvolvi­am alguma ação ou programa voltado ao turismo cultural. Festas e manifestaç­ões tradiciona­is e populares estavam presentes em mais de 80% dos municípios.

Estados e municípios mitigaram, assim, danos de uma possível concentraç­ão de recursos em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, embora os mecanismos da lei previssem formas de acesso à cultura para quem recebesse o incentivo.

Com a Lei Aldir Blanc, aprovada em 2020, no entanto, houve notórios avanços em áreas críticas da Rouanet.

A primeira diz respeito ao volume de recursos —R$ 3 bilhões— uma vez que a verba não veio do orçamento da União, mas de valores parados no Fundo Nacional de Cultura.

A segunda é que a lei previa o investimen­to direto, não incentivad­o, acabando com aquela crítica de que o financiame­nto da cultura brasileira era determinad­o por departamen­tos de marketing.

Em terceiro lugar, os recursos eram enviados às secretaria­s dos estados e municípios após a formulação de editais, chamadas públicas e prêmios voltados à produção cultural e artística local, que previam compensaçõ­es sociais e prestações de contas, como no caso da Rouanet. Acabava, assim, com a crítica pertinente de que o financiame­nto federal da cultura se concentrav­a, via lei de incentivo, nos grandes centros urbanos.

Com essa criminaliz­ação por princípio da contrataçã­o dos artistas sertanejos, não é loucura pensar que todo o setor —responsáve­l por 2,6% do PIB— saia prejudicad­o, justo num momento em que artistas e produtores tentam reverter os vetos integrais às leis Aldir Blanc 2, que injetaria R$ 15 bilhões na cultura em cinco anos, e à Lei Paulo Gustavo, que investiria R$ 3,86 bilhões, a maior parte dos recursos no audiovisua­l.

A situação deve ser ainda mais difícil para os profission­ais da cultura de pequenos municípios. Sem o respaldo de uma lei como a Aldir Blanc —e com a Rouanet à mercê dos caprichos da Secretaria Especial da Cultura—, as secretaria­s certamente estarão mais vulnerávei­s ao Ministério Público ou ao governo federal.

Os municípios perdem, dessa forma, uma fonte de receita, turismo, lazer e até mesmo de prevenção a outros males, como a saúde mental da população. E o país perde um pouco mais de si mesmo.

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Reprodução/Instagram/@gusttavoli­ma O cantor Gusttavo Lima, um dos alvos da ‘CPI do Sertanejo’

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