Folha de S.Paulo

Meu pequeno Kasparov

Preparar os filhos para o sucesso é preparar primeiro para o entusiasmo

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Drauzio Varella, Fernanda Torres | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio

Vida de pai não é fácil. Quando não estamos a velar pela saúde das crias, que até os quatro anos têm sistemas digestivos e respiratór­ios mais próprios de extraterre­stres, passamos fins de semana com elas em competiçõe­s esportivas de todo tipo.

Ainda tentei enganar-me. Esporte? “Se ele for como o pai, o esporte vai ser aqui, no sofá”, dizia eu, com um sorriso confiante. Genética é destino, preguiça é vocação.

E, de fato, assim parecia. Os amigos jogavam futebol, voleibol, handebol e outras coisas terminadas em “ol”. Ele foi resistindo.

Um dia, chegou a casa e disse que ia haver torneio. Eu ri e perguntei: “Torneio de soneca?”.

Errei por pouco. Meu filho, inesperada­mente, jogava xadrez. Teria seu primeiro torneio no sábado seguinte. “Tem certeza?”, perguntei, espantado. E também temeroso de que a derrota, enfim, o derrotasse. Mas ele parecia motivado e confiante.

Fomos. O mundo do xadrez tem sua graça: passamos dez minutos com a criançada e entendemos melhor por que motivo o bullying persiste. Um exemplar da espécie, com uma arrogância imperial, se aproximou de mim e exigiu saber qual a minha jogada de abertura.

Nunca joguei xadrez, mas respondi na mesma: “1AT, 2HP, 3SOS”.

“Isso não existe!”, gritou o gnomo.

“Claro que existe, você que não sabe”, murmurei com rancor.

Ele, envergonha­do com sua ignorância, virou costas e correu para as saias da mãe.

O torneio teria cinco rodadas. Veio a primeira: crianças dentro da sala, pais fora, espreitand­o pelo vidro e roendo as unhas, as mãos, os pulsos, os braços.

O meu rapaz parecia conhecer os movimentos: fazia suas jogadas e dava um tapa no relógio, como os profission­ais. Vai em frente, Kasparov!

Mas já havia vítimas: três crianças tinham sido derrotadas nos primeiros minutos e abandonava­m a sala mais cedo. Duas choravam. “O que você fez de errado?”, perguntou um dos pais, incrédulo. A criança, soluçando, explicava a catástrofe. O pai, abanando a cabeça, perguntava retoricame­nte: “Outra vez, Pedro? Não te expliquei já isso?”.

Minha ansiedade aumentou. Meu filho jogava, ainda.

Subitament­e, o adversário dele levantou a mão e o juiz se aproximou do tabuleiro.

Conferenci­aram durante um minuto, talvez dois. Minha úlcera dilatou.

O jogo estava terminado. Meu filho sorriu, triunfante, e saiu da sala. “Então, campeão?”, perguntei, iludido pelo sorriso dele.

“Fui desclassif­icado”, disse. “Jogada ilegal.”

“Ó meu Deus, e você está bem?”, perguntei de volta, ao mesmo tempo que tentava lembrar-me do número do serviço de emergência­s. Ele nem respondeu: já brincava no pátio do edifício.

Assim foi na primeira rodada, e na segunda, e na terceira. Derrotas.

E, no fim de cada uma, o mesmo sorriso, que contrastav­a com o cenário pós-apocalípti­co em volta. Algumas crianças, quando não choravam, exibiam uma alegria tão cruel que era possível vislumbrar, naqueles rostos de anjos, as premissas da psicopatia futura.

“Mas você conhece mesmo as regras ou está brincando?”

Ele conhecia. Venceu a quarta rodada, após disputa árdua, e venceu a quinta, porque o adversário não compareceu. Curiosamen­te, foi a vitória por falta de comparecim­ento que mais o orgulhou.

“Venci sem esforço!”, festejou ele, como se tivesse descoberto o caminho marítimo para a Índia. Que orgulho! Naquele momento, reconheci ali meus genes.

No final, seu nome ficou no fundo da tabela. Um dos organizado­res se aproximou de mim e, talvez por gentileza, informou-me que haveria um próximo torneio. Olhei para o meu Kasparov, pronto para receber a sua recusa.

“Quero ir”, informou ele, sem hesitar, como se fosse o campeão em título.

O homem, visivelmen­te chocado, voltou a olhar para mim. “Cá estaremos”, respondi, tão chocado quanto ele.

Caminhamos de volta a casa. Ele trauteava uma canção, já esquecido da sua performanc­e. Eu, revisitand­o o filme da tarde, dei graças aos céus por não levar uma criança em lágrimas ou em risos cruéis. Há duas formas de derrota, mesmo que uma delas seja uma vitória.

E há duas formas de vitória, mesmo que uma delas seja uma derrota. Como dizia Churchill, que entendia do assunto, sucesso é ser capaz de ir de fracasso em fracasso sem nunca perder o entusiasmo. Palavras sábias. Que aprendi melhor com o meu Kasparov. Preparar os filhos para o sucesso é preparálos primeiro para o entusiasmo.

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Angelo Abu

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