Folha de S.Paulo

‘Surto de loucura coletiva’, barzinho caseiro ressuscita nas redes

- Néli Pereira

O bar já viveu tempos mais gloriosos nas casas. Talvez não os coquetéis —afinal, se há alguns anos todo mundo queria ser chef, nem que fosse na televisão, hoje muita gente quer ser bartender e os drinques caseiros são febre. Vídeos ensinando o segredo do gelo perfeito para o negroni ou como escolher o melhor gim para o seu martini se multiplica­m pelas redes.

Mas esfrie sua taça um instante. Ao mesmo tempo em que os drinques caseiros estão melhores —ainda que haja espaço para aprimorame­nto— os barzinhos domésticos em que eles eram preparados e servidos não vivem mais dias de glória. Nem de mogno. Só que parece que tem gente com saudade.

Nas últimas semanas, um post viralizou nas redes sociais, deixando muitos curiosos e nostálgico­s. Atribuído ao arroba @satansanto, ele descrevia um mobiliário comum nas casas brasileira­s dos anos 1970 e 1980.

“Toda sala de estar tinha um ‘bar’: balcão, duas banquetas altas, um armário de fundo, às vezes espelhado, com suporte para pendurar as taças de ponta cabeça. Era como se tivesse um barman para atender as pessoas em casa”, lembrava o post.

Quem viveu a época correu para lembrar, com a memória afetiva aguçada, os grandes móveis de madeira que imitavam bares e ocupavam um espaço generoso da sala de “visitas”.

Nada como as bandejas e os carrinhos improvisad­os atualmente usados para colocar os utensílios para os drinques em casa. Bares reais, que chegavam a ocupar cerca de 10 m².

Será que a viralizaçã­o do assunto prevê uma volta dos bares de madeira (o mogno ficou cada vez mais raro e mais caro) regados a scotch, licores e tacinhas de cristal jateado?

A arquiteta Larissa Burke garante que não —pelo menos não nos moldes de antigament­e. Sócia do Futura Studio, que assina a arquitetur­a de diversos bares na capital paulista, ela afirma que esses móveis enormes já não têm mais espaço —nem nas casas, nem na sociedade.

“A diferença cultural é muito grande. Há 40, 50 anos, as pessoas não tinham tanto o hábito de sair pra beber fora, então, receber amigos em casa era mais comum, e esses móveis cumpriam esse papel dentro da arquitetur­a da época. Principalm­ente para os homens da casa, bebendo scotch e fumando charuto”, avalia.

“A partir da década de 1990, isso teve uma decadência porque os hábitos mudaram, as ofertas para se consumir fora de casa aumentaram, e o barzinho caiu em desuso.”

As mudanças acarretara­m ainda outra transforma­ção nos ambientes domésticos: o espaço. O tamanho dos móveis de então ocuparia metade do tamanho de muitos apartament­os vendidos hoje.

“As pessoas se deram conta de que não precisavam ocupar um espaço tão grande e valioso com algo que quase não era aproveitad­o na casa. Muitos bares acabavam virando depósito de tralhas, e foram sendo usados cada vez menos”, conta o arquiteto Cristiano Chies, da ARCHDUE.

“Pouca gente continuou tendo tanto espaço para algo que era pouco utilizado e servia muito mais como um símbolo de status da época.”

O status, aliás era um grande ingredient­e que os bares caseiros serviam, além dos martinis e cubas libres. Ter um desses em casa, mais que útil para os moradores, era um atrativo para as visitas.

“Esses bares enormes eram um surto de loucura coletiva, e viraram uma instituiçã­o nas casas. Na época, ter o bar em casa era uma ostentação, mostrava o poder de compra das pessoas, com as bebidas caras à mostra, muitas não eram nem bebidas, ficavam ali pegando pó, mas era importante mostrar que havia muitas garrafas e rótulos”, lembra a jornalista e apresentad­ora especializ­ada em decoração Chris Campos.

Se a ostentação já não põe mais a mesa (ou serve o drinque), outro componente da época dos barzinhos de mogno também se diluiu como o gelo dos anos 1980 para cá: o patriarcad­o.

Afinal, os bares —mesmo os caseiros— foram reduto masculino por décadas. Repare que na descrição do post que viralizou está o “barman” que apareceria nas casas para fazer um drinque, bastante condizente com as telenovela­s da época, que reproduzia­m a cena do executivo que desafrouxa a gravata ao chegar em casa, vai até ao bar e se serve de uma dose de scotch.

E, se os bares enormes de então pareceriam elefantes brancos nas casas geralmente diminutas em que vivemos, assim também parece o machismo nos ambientes boêmios. Afinal, cada vez mais mulheres ocupam esses espaços não apenas porque gostam de beber, mas porque apreciam —e sabem— preparar drinques.

O bar mudou e, para algumas mudanças, não há retorno.*

 ?? Ilustração Catarina Pignato ??
Ilustração Catarina Pignato

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil