Folha de S.Paulo

Menina grávida de estuprador teve série de direitos violados

- Eliane Trindade

são Paulo Aos sete meses de gravidez fruto de estupro, a menina de 11 anos que teve seu drama exposto em uma audiência judicial registrada em vídeo é vítima de uma série de violações de direitos.

É a análise de operadores do sistema de proteção e de garantia de direitos da infância ouvidos pela Folha, após a divulgação das cenas em que a juíza Joana Ribeiro Zimmer e a promotora Mirela Dutra Alberton teriam induzido a garota a desistir do aborto legal.

“Você suportaria ficar mais um pouquinho?”, indaga a juíza ao sugerir à criança levar a termo a gravidez fruto de violência e entregar o bebê para adoção. “Vai fazer uma família muito feliz”, argumentou. Uma felicidade às custas das nossas dores, rebateu a mãe da vítima, aos prantos, ao pedir à juíza que a deixasse cuidar da menina que ficou 40 dias recolhida em um abrigo.

“Essa criança que já sofreu violência sexual e enfrenta uma gravidez é revitimiza­da no Judiciário. Ela é castigada e vai para o acolhiment­o, que é um recurso extremo, enquanto o agressor é quem deveria ser punido”, afirma a psicóloga Lígia Caravieri, coordenado­ra do Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância do ABCD.

Para a juíza Cristiana Cordeiro, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e presidente da Associação Juízes para a Democracia, os trechos vazados da audiência geram uma avalanche de indignaçõe­s.

“Em momento algum, os direitos daquela menina gestante por estupro são levados em conta”, afirma. “O que se vê naquela audiência é um despreparo gigantesco dos operadores da Justiça.” Segundo ela, as falas da juíza e da promotora dão a entender que seria um crime não prosseguir com a gestação, o contrário do que diz a lei que autoriza o aborto se tratando de estupro.

A Corregedor­ia do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o Conselho Nacional de

Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público anunciaram a abertura de procedimen­tos internos para averiguar as condutas da juíza e da promotora no caso.

“Esse é um caso grave de violência institucio­nal, ao submeter uma vítima de estupro a procedimen­tos desnecessá­rios ou invasivos que levaram à revitimiza­ção”, avalia Pedro Hartung, diretor de Políticas e Direitos do Instituto Alana.

É apontado também o descumprim­ento da lei da escuta protegida para crianças e adolescent­es vítimas ou testemunha­s de violência. Desde 2017, a Lei 13.431 estabelece uma série de protocolos para a evitar revitimiza­ção.

“São raros os municípios que implementa­ram a lei”, afirma Itamar Gonçalves, gerente de programas da Childhood Brasil. Segundo ele, apenas cerca de 900 salas de escuta protegida foram instaladas no país. “O judiciário ainda é o órgão que mais viola direitos da criança.”

A escuta protegida e o depoimento especial devem ser realizados por psicólogos ou assistente­s sociais treinados e em salas especiais. O relato da criança é gravado de forma que ela não precise repetir a mesma história na delegacia, no IML e em juízo.

“Profission­ais capacitado­s fazem as perguntas de forma que não sejam vexatórias, estigmatiz­antes e violentas como as que foram feitas nesse depoimento em Santa Catarina”, explica Hartung.

O advogado ressalta o impacto dessa violência institucio­nal no desenvolvi­mento da criança. “As palavras utilizadas e as perguntas geraram constrangi­mento. E não levaram em consideraç­ão o sofrimento psíquico e biológico da vítima. É uma nova violência.”

O depoimento vazado para a imprensa em um processo que corre em segredo de Justiça teria ocorrido em 9 de maio, quando a vítima estava na 22ª semana de gestação. Dias antes, a garota tivera negado seu direito a um aborto legal ao bater as portas do Hospital Universitá­rio de Florianópo­lis.

“O código penal não coloca limitação de semanas para o aborto legal. A denúncia da criança e da mãe da vítima deveria ter sido levada em conta e o abortament­o realizado sem questionam­ento”, entende a advogada Adriana Borghi,

Cristiana Cordeiro

presidente da Associação Juízes pela Democracia membro do Instituto Brasileiro de Direitos da Criança e do Adolescent­e (IBDCRIA).

Para Denise Casanova Villela, procurador­a de Justiça do Rio Grande do Sul, esse caso evidencia as falhas em toda a rede de proteção. “Onde estava a escola, o posto de saúde? Como uma criança de 10 anos grávida e estuprada passa incólume por todos até chegar ao sistema de Justiça com 22 semanas de gestação?”.

As sucessivas violações de direitos da vítima acontecem em um contexto em que as violências sexuais são invisibili­zadas, de acordo com Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta.

“Tudo isso acontece porque não falamos sobre o assunto. Temos que discutir as violências criminosas e as institucio­nais”, diz a advogada, à frente do movimento #AgoraVcSab­e, para acabar com o silêncio em torno do problema.

“É o tipo de violência que acontece todo dia no país, onde quatro meninas são estupradas a cada hora.”

“Em momento algum, os direitos da menina gestante por estupro são levados em conta. Oquesevêé um despreparo gigantesco dos operadores da Justiça

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