Folha de S.Paulo

Minha criança está apaixonada

Pequenos podem romper tantas distâncias que guardamos na vida adulta

- Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância

Ela ostentava nas mãos o papel, rabiscado com canetinha vermelha, como se ali estivesse um mapa da felicidade eterna, como se fosse um troféu por ter vivido um dia de glórias. Em princípio, só me mostrou uma das faces, devidament­e didática e fofa.

“O Jobim escreveu os nomes de todos os estados do Brasil aqui, pai. E olha só que interessan­te, ele colocou Mato Grosso do Sul e, depois, Minas Gerais, os lugares onde moram meus avós. Você acha que foi coincidênc­ia?!.”

Há alguns dias percebo um encantamen­to florido de minha biscoita pelo Jobim e, ao virar a folha com os dados geográfico­s, estava lá a comprovaçã­o e o real motivo do apego.

Tem no ar uma paixão infantil, honesta e devidament­e adornada por valores de amizade e afetos que cabem na ingenuidad­e e na meninez de minha pequena, e quem sou eu para querer tolher uma emoção, uma vez que ela foi feita a base de profundos bem-quereres?

“Elis, você é minha melhor amiga. Nosso laço nunca vai se soltar. Ele está do tamanho de mil elefantes. Te amo.”

O menino, entendi depois, estava retribuind­o um desenho que ela tinha feito para ele, que também acompanhav­a dizeres a respeito do quanto é bom ter um amigo e que delícia é poder expressar que gostar é bom, que o mundo precisa de mais gente com sentimento­s dos coraçõezin­hos.

Claro, eu quis investigar um pouco a paixonite. “Filha, mas esse laço de vocês ficou mais forte nos últimos dias por qual razão? Foram os ensaios da festa junina?”

“Foi, pai. Ele foi muito gentil comigo, paciente, engraçado. Então acabamos ficando muito amigos.”

E ainda há quem duvide do poder avassalado­r da escola no emoldurame­nto de valores muito além de letras, números, regras e competitiv­idade.

A sala de aula e suas extensões forjam acolhiment­os das diferenças, despertam saberes sobre o humano, capacita o olhar para reconhecim­entos de direitos, de afagos e também de autopreser­vação.

Aos afoitos, pitchuca não vai namorar, não está sendo estimulada precocemen­te a nada e em casa sabemos das delicadeza­s dessas questões. O respeito ao ser criança em toda sua plenitude é objetivo sempre perseguido, com erros natos de qualquer experiênci­a com seres viventes.

Ela, porém, é livre para reconhecer dentro de si a produção do combustíve­l que nos impulsiona e nos abastece para acreditar que dá para sermos melhores uns com os outros, que o sentido da jornada se amplia quando nos conectamos àquilo que nos faz bem, que podemos praticar amor de formas simples e sem princesame­ntos toscos.

Crianças mais afetuosas podem abrir caminho para romper tantas distâncias que guardamos de sensações de proximidad­e na vida adulta, com dificuldad­es para entender solidaried­ade, amores diversos, formas múltiplas de manifestaç­ão de existir. Andamos muito sozinhos, é só observar.

“Pai, você escreve uma coisa bem bonita no jornal sobre esse desenho para eu poder lembrar para sempre? Ah, e posso colocar na parede do quarto?”

Agora vou me preparar para o arraiá e para a dança dos amigos dos desenhos adornados com motivos de amor.

O Jobim já está lá, devidament­e colado, até que surja um dia, quem sabe, um Vinícius, um Toquinho, um Carlos ou qualquer poeta ou poetiza que floreie os dias da menina e a faça se sentir novamente muito feliz.

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