Folha de S.Paulo

Sobre os saberes indígenas e as ignorância­s do branco

- Leão Serva

WATORIKI (TERRA INDÍGENA YANOMAMI, AM) Havia qualquer coisa de onírico. De repente, me vi andando pela grande casa escura onde mora um homem mais de uma vez indicado ao prêmio Nobel da Paz, assistindo ao encontro entre dois brasileiro­s destacados da cena cultural internacio­nal: ela, escritora e artista plástica, com obras em exposição na Fundação Cartier, na França, depois de passar por Xangai, na China; ele, um filósofo best seller, tem seu livro mais recente já traduzido em diversas línguas estrangeir­as. Os dois indígenas se emocionava­m pelo encontro depois de muitos anos sem se ver.

A casa de Davi Kopenawa, chamada de Watoriki, numa região da Terra Indígena Yanomami denominada Demini, parece um lugar de sonhos. Amaloca circular, comum grande pátio interno, fica no sopé de uma rocha imensa, uma pedra única de algo como cem metros de altura e outros tantos de largura. Perto da pedra escura, agrande casa, que abriga cerca de 150 moradores, parece um pequeno anel jogado ao chão.

Ehuana Yaira Yanomami também mora em Watoriki. Com formação de professora, ela estudou a evolução dos ritos tradiciona­is relacionad­os à primeira menstruaçã­o das meninas. Esse trabalho resultou em um livro didático, sobre menstruaçã­o, casamento, sexo e nascimento. “Yipimuwi Thëã Oni: Palavras escritas sobre menstruaçã­o” foi escrito com a antropólog­a Ana Maria Machado e publicado em 2017 com apoio do MEC (Ministério da Educação e Cultura) em uma coleção de livros sobre saberes indígenas na escola.

Mas a maior repercussã­o veio para seu trabalho como desenhista, dando forma visual a mitos e outros elementos da cultura yanomami. No dia em que testemunhe­i seu encontro com Ailton Krenak, quando visitávamo­s a Terra Indígena por ocasião da comemoraçã­o dos 30 anos de sua homologaçã­o, no final de maio, ela comentava frustrada que não tinha podido ir à França para a abertura da exposição “Utopia”, na cidade de Lille, onde seus trabalhos aparecem ao lado de obras de outros artistas indígenas brasileiro­s, como Jaider Esbell (Macuxi, morto em 2021). Poucos dias antes da estreia, Ehuana se deu conta de que tinha perdido a carteira de identidade e por isso o passaporte não ficou pronto a tempo de embarcar para a abertura da mostra, em 14 de maio. Ela pretende ir ver a exposição tão logo obtenha o documento de viagem. O evento, com curadoria do antropólog­o franco-brasileiro Bruce Albert, fica em cartaz até o dia 2 de outubro.

No ano passado, os desenhos da professora, escritora e artista plástica já tinham sido apresentad­os em Xangai, na China, em mostra também promovida pela Fundação Cartier.

Pouco antes do encontro entre os dois, Ailton Krenak comentava o lançamento de novas traduções de seu livro “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo” para uma série de línguas estrangeir­as, como inglês, italiano, turco, sueco e alemão. O líder indígena tornado famoso ainda jovem por um discurso performáti­co durante os debates na Assembleia Constituin­te, que preparava a Carta de 1988, é hoje um filósofo celebrado em vários cantos do mundo.

Krenakf oi iniciado no movimento político nacional ao lado de Davi K ope nawaeoutro­slí deres indígenas no enfrentame­nto ao projeto do governo do general Figueiredo (1979-1985), último da ditadura militar, de reduzir os direitos dos povos originais. Ele voltava à casa de Kopenawa para a celebração de uma vitória do movimento indígena (a homologaçã­o da Terra Yanomami, em 1992) e para discutir desafios colocados pelo atual governo, também de formação militar, que procura reduzir os direitos assegurado­s aos indígenas na Constituiç­ão brasileira —mais de 40 anos depois da tentativa do ultimo general-presidente de mudar o Estatuto do Índio, no início do mandato.

O presidente da República costuma dizer que “os índios estão cada vez mais parecidos conosco”. Aquele encontro de excelência­s deixou claro que sonho seria se o inculto presidente fosse “cada vez mais parecido com os indígenas”. Mas, em verdade, ele está muito longe do Prêmio Nobel da Paz; é incapaz de produzir qualquer coisa relacionad­a às artes, muito menos para expor em Paris ou outra capital; ou quem dirá escrever livros de pensamento filosófico sobre como adiar o fim do mundo, quando todos os seus atos parecem voltados para apressar o apocalipse.

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Fotos Leão Serva/Folhapress Davi Kopenawa, liderança yanomami, em sua casa no Amazonas (à esq.) e o filósofo e ambientali­sta Ailton Krenak e a artista Ehuana Yanomami (à dir.)
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