Folha de S.Paulo

O país é meu, destruo como quiser

No ódio da extrema direita ao Estado, se esconde o desejo de nunca obedecer à lei

- Marcelo Coelho Autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’, é mestre em sociologia pela USP |seg. Luiz Felipe Pondé| ter. João Pereira C out inho|qua. Marcelo Coelho| qui. D rau zio Varella, Fernanda Torres| sex. Dj amila Ribeiro| sáb. Mario Ser

Aconteceu em Salvador, mas poderia ter si doem qualquer outra cidade do país —em São Paulo, mais do que nas outras, acho eu.

Um sujeito foi abordado pela polícia de trânsito; não tinha carteira de motorista. Primeiro, nega que estava dirigindo o carro. Depois, pega um caixote de metal, ou coisa parecida, e começa a destruir o próprio carro. Sobe na capota, arrebenta o que consegue, e, segundo diz a notícia, foge do local.

Disse que não ia deixar “o Estado” apreender sua propriedad­e; preferia inutilizá-la a permitir sua retirada para um depósito.

Não sei nada mais sobre o caso ou sobre o histórico pessoal do seu protagonis­ta. Não especulo, portanto, sobre as preferênci­as eleitorais desse bravo cidadão.

Mas é claro que a cena é um retrato do Brasil bolsonaris­ta, como tantas outras em que regras mínimas de respeito cotidiano são vandalizad­as por quem se acha dotado de mais direitos que os demais.

É a socialite que queria entrar sem máscara numa festa e ataca com xingamento­s racistas o segurança da boate; é o “homem de bem” que insulta e bate no entregador de pizza; é a horda que se reúne para apedrejar a casa onde mora um menino trans.

Nada disso começou no governo Bolsonaro, como sabemos. Mas o presidente e seus comparsas oficializa­ram esse tipo de arrogância. O procedimen­to habitual da brutalidad­e brasileira era fazer tudo de modo mais envergonha­do.

Os generais da ditadura, torturando a valer, diziam que não existia tortura no Brasil. Hoje, os apoiadores do sistema se orgulham do que foi feito.

O grande grito de independên­cia, a validação triunfal da estupidez, ocorreu quando Bolsonaro, ainda deputado, declarou seu voto pelo impeachmen­t de Dilma Rousseff homenagean­do a memória de Brilhante Ustra.

Acho que foi esse o momento em que sua candidatur­a se tornou real e “ganhou sentido” para a maioria fascista que o sustentou e ainda sustenta. “É isso mesmo o que queremos, chega de disfarçar.”

Tratava-se de “ser verdadeiro”, isto é, rejeitar como hipocrisia qualquer cuidado com negros, sem-teto, homossexua­is, indígenas, pessoas que dependiam do Bolsa Família, perseguido­s políticos, artistas, jornalista­s, familiares de quem foi morto pela pandemia. “E daí?”, perguntou Bolsonaro.

O engraçado é que essa forma de ser “verdadeiro” coexistiu e coexiste com a prática recorrente das fake news. É a lição de Trump, negando até hoje ter perdido as eleições e também o método do nosso motorista em Salvador, que não admitiu estar guiando o carro quando foi parado pela blitz.

Soma-se a isso a rejeição ao Estado. Dito assim, parece “bonito”, isto é, “libertário”, “moderno” ou “liberal”. Mas o que esses radicais desejam não é apenas uma menor intervençã­o do Estado na economia (o que, pensando no Brasil, já é besteira de bom tamanho).

Esse ramerrão liberal é apenas o disfarce, num plano mais amplo, para a rejeição da lei; num plano menor, o que se oculta é a rejeição das normas de boa educação.

Não é à toa que liberais “do mercado”, dotados de maneiras impecáveis, não viram nenhum problema em se aliar a milicianos, estelionat­ários religiosos, invasores de terras indígenas e torturador­es. Não é só que não gostam do Estado: não gostam de obedecer à lei.

Ah, mas eles defendiam a luta contra a corrupção. Acho que essa bandeira nunca passou de disfarce para uma raiva maior. Claro que corrupção é um crime, é um roubo, é um ataque ao Estado e ao interesse público. Mas, para eles, qualquer imposto é roubo também.

Na cabeça desses liberais, o direito à propriedad­e é um direito absoluto. Se o Ibama se mete na minha fazenda, se a Receita Federal exige minha declaração de renda, se eu tenho de pagar uma taxa pela importação do meu Audi e do meu vinho francês, isso é roubo também.

“Ninguém manda em mim”: esse suposto grito de liberdade significa que poderei contaminar quem eu quiser com o vírus que escolherei, que posso matar quem eu achar necessário com a arma que comprei com meu dinheiro, e que nenhum guardinha de trânsito irá me impedir de circular com meu carro sem ter carteira de motorista.

Estão querendo estragar a minha festa? Destruo o meu carro, destruo o STF, destruo o sistema eleitoral, destruo a Amazônia, destruo o meu país. Ele é meu —faço com ele o que quiser.

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André Stefanini

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