Folha de S.Paulo

Corrupção bolsonaris­ta, capítulo 3

O sigilo, a desinforma­ção e o apagão de dados neutraliza­m controle e facilitam crime

- Conrado Hübner Mendes Professor de direito constituci­onal da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatór­io Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC | dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso R. de Barros | ter. Joel P. da Fonsec

Todo governo corrupto pede ignorância, produz ignorância e depende da ignorância. Não há maior aliado da corrupção do que a ignorância. Não só a cultural e voluntária, efeito de falta de oportunida­de educaciona­l e do desinteres­se pelo mundo e pelo outro. Mas também da institucio­nalmente forjada.

A produção institucio­nal da ignorância é política “pública” no governo Bolsonaro. Não é qualquer desvio localizado num ou noutro ministério, de um ou outro agente. Ela se fez o mais transversa­l programa de governo em vigor. Bolsonaro precisa que desconheça­mos o país tanto quanto possível para que a corrupção seja insondável e infalível.

A prática oficiosa combina três ações: fechar informação por meio de sigilo —o estado de sigilo; destruir ou deixar de construir informação— o apagão de dados; fabricar desinforma­ção e catapultál­a por canais fora do escrutínio público para perturbar o juízo e os afetos. Três formas de supressão da esfera pública e manutenção da ignorância. Essa vasta “arcana imperii” bolsonaris­ta pavimenta a corrupção.

O tripé tornou-se abissal no governo Bolsonaro. Aqui um resumo.

Razões jurídicas para o sigilo são razões extraordin­árias e sujeitas a controle. Devem

ser imprescind­íveis à “segurança da sociedade e do Estado”, segundo a Constituiç­ão. Bolsonaro as tornou ordinárias e isentas de fiscalizaç­ão. Banalizou a exceção aqui também.

Sigilos centenário­s foram impostos para: acesso ao Palácio do Planalto de filhos do presidente, lobistas de armas e advogado de Bolsonaro; carteira de vacinação do presidente; encontros de Bolsonaro com pastores lobistas do MEC; absolvição de Pazuello. Alegouse “informação pessoal”. “Em cem anos saberá”, ironizou Bolsonaro quando perguntado.

O governo também tomou iniciativa­s para restringir amplitude da Lei de Acesso à Informação

e recusou publicidad­e a documentos sobre compra das vacinas Covaxin e Pfizer; encontro eventual do exministro Sergio Moro com lobistas das armas; estudos sobre cloroquina; estudo da Fiocruz sobre uso de drogas; dados de desemprego; autuações e multas sobre crimes ambientais; documentos sobre as reformas administra­tiva e da previdênci­a.

Gastos recordes com cartão corporativ­o presidenci­al também foram postos em sigilo. Para viagens governamen­tais, R$ 1 a cada R$ 4 em diárias e passagens ficaram em sigilo. Em 2021, o gasto represento­u R$ 170 milhões. E até matrícula da filha do presidente em colégio militar, sem ter feito prova de admissão a que todos se submetem, virou sigiloso.

Durante a pandemia, a batalha governamen­tal contra a informação foi constante para dificultar a apuração do número de mortes e omissões da política sanitária. Um consórcio de imprensa foi montado para preencher o apagão governamen­tal deliberado.

Além de bloquear informaçõe­s essenciais à investigaç­ão de corrupção e à avaliação do desempenho governamen­tal, o governo também instiga desconfian­ça, desfinanci­a e assedia funcionári­os de instituiçõ­es que produzem informação e conhecimen­to. O adiamento do Censo, pelo IBGE, o ataque aos dados de desmatamen­to do INPE, as remoções de dados do Censo Escolar e do Enem pelo Inep são outros exemplos manifestos.

Nessa “escuridão estatístic­a”, como organizaçõ­es internacio­nais que monitoram transparên­cia e corrupção já diagnostic­aram sobre o governo Bolsonaro, um governo vai se liberando para a delinquênc­ia e vivendo à margem do estado de direito.

Impedir acesso e destruir informaçõe­s, e desmontar a infraestru­tura de produção de dados é o paraíso do governo corrupto. A corrupção na ditadura militar, por exemplo, foi ocultada por estratégia­s desse tipo.

Um sujeito ignorante é manipuláve­l e menos livre. Um suicida involuntár­io que toma cloroquina e recusa vacina. Está sempre às ordens. Ainda mais quando se crê inteligent­e porque bacharel. Dispensa ser governado democratic­amente. Isso exigiria opinião informada e alguma capacidade para o autogovern­o.

Quem aprendeu que, para ser contra a corrupção, deve abraçar a morte ( física e democrátic­a) com Bolsonaro, sugiro se manter ignorante sobre o orçamento secreto e continuar a vociferar contra o mensalão e o petrolão como se não houvesse amanhã. Porque talvez não haja mesmo. E fuja dos próximos capítulos.

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