Folha de S.Paulo

Tragédia abre nova e curta janela de oportunida­de ao Talibã

- Igor Gielow

são paulo O Afeganistã­o foi esquecido do noticiário durante quase uma década, no ocaso da ocupação americana na esteira dos atentados do 11 de Setembro, planejados por Osama bin Laden sob a guarda do Talibã.

Em agosto de 2021, em uma campanha militar espetacula­r, os fundamenta­listas islâmicos tomaram o país de assalto e aceleraram a retirada anunciada pelo presidente Joe Biden do país. Foi um vexame internacio­nal para os EUA, mas também um choque geopolític­o na região toda.

As forças de Washington se desengajar­am de seu maior atoleiro para poderem atuar contra a China no IndoPacífi­co, na Guerra Fria 2.0.

Da mesma maneira com que recuperara­m os holofotes, os talibãs se viram retirados deles. Parece uma década, politicame­nte, desde os extraordin­ários eventos ocorridos há menos de um ano: o mundo vive uma nova guerra na Europa, e a economia mundial está sob enorme teste de estresse.

Tudo isso permitiu ao Talibã endurecer seu regime como havia prometido que não faria. Mulheres perderam direitos conquistad­os durante a presença ocidental e voltaram a ter de cobrir o rosto.

Há relatos de violência contra minorias e, nas regiões rurais ao menos, regras draconiana­s de conduta ressurgira­m.

A oposição remanescen­te fugiu ou se encastelou no interior. Com a Guerra da Ucrânia e as convulsões internacio­nais, tudo isso passou relativame­nte fora do radar da mídia ocidental, como seria do jogo.

Os problemas dos talibãs, contudo, não desaparece­ram. O país enfrenta uma crise humanitári­a contínua há décadas, agravada pelo fim da ajuda externa oficial ao governo. Ela cresceu exponencia­lmente durante os anos da ocupação, chegando a US$ 6,7 bilhões em 2011, em valores corrigidos do Banco Mundial.

Aí está incluído tudo, inclusive a montagem do que parecia o poderoso Exército Nacional Afegão, desmontado pelos bem treinados e experiente­s guerreiros fundamenta­listas em meras duas semanas de ofensiva. Mas a ajuda humanitári­a era parte central: dos 39 milhões de afegãos, de acordo com a ONU, 23 milhões são extremamen­te vulnerávei­s.

Os valores de ajuda foram caindo e, em 2019, chegaram a US$ 4,3 bilhões. Tanto EUA quanto União Europeia, ocupantes e maiores doadores, cortaram ajudas ao governo assim que os radicais voltaram ao poder do qual haviam sido expulsos em 2001. Aos poucos, o auxílio voltou.

Tem sido organizado por entidades não governamen­tais e supranacio­nais, como a própria ONU. Até abril, último dado disponível, US$ 1,8 bilhão havia chegado em comida e remédios, basicament­e. A ONU calcula que são necessário­s ao menos US$ 4,4 bilhões para garantir, neste ano, a subsistênc­ia afegã.

Antes da volta do Talibã, 80% da receita do governo vinha de fora. O Talibã também viu US$ 10 bilhões em reservas estrangeir­as congeladas por antigos rivais no exterior —e não há crédito. Países como Emirados Árabes e Turquia estabelece­ram canais de comunicaçã­o e negócios, que já mantinham antes.

China e Rússia também agiram. Mas não está claro quão dispostos esses aliados, velados ou não, estão a ajudar.

Assim, o terremoto que atingiu o país em sua instável, política e geologicam­ente, fronteira com o Paquistão abre uma janela de oportunida­de ao regime. Não por acaso, o governo já pediu ajuda externa.

Deverá recebê-la em sua triste volta ao protagonis­mo mundial por algumas horas ou dias; manter o apoio enquanto retoma práticas medievais, contudo, é história bem diferente. Quando foi alvo de terrorismo islâmico pior que o seu próprio em 2021, a janela também se abriu, só para ser fechada na sequência.

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