Folha de S.Paulo

Editoria de democracia

Cobertura dos desafios ao direito de votar vira especialid­ade na imprensa americana

- Lúcia Guimarães É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspond­ente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo

As audiências do comitê que investiga o 6 de Janeiro no Congresso americano são mais do que uma narrativa didática sobre a tentativa de golpe de Estado orquestrad­a pelo ex-presidente Donald Trump.

O bem produzido espetáculo de depoimento­s interrompi­dos por vídeos e gráficos deixa ainda mais claro que a invasão do Capitólio foi um primeiro ato, não a conclusão de uma convulsão autoritári­a atípica.

As midterms, em novembro, anunciam-se como uma das eleições mais inseguras da memória recente, com legislativ­os estaduais tentando garantir que o fracasso em roubar o pleito de 2020 não se repita.

A mídia dos Estados Unidos, cujo fracasso em expor o perigo representa­do por um playboy candidato com décadas de currículo empresaria­l sujo em Nova York e a obsessão com e-mails de Hillary Clinton são um capítulo lastimável na história da imprensa livre, parece estar emergindo da credulidad­e que custou tão caro.

Em ao menos duas grandes Redações americanas, uma nova editoria se juntará às tradiciona­is, como Economia ou Esportes. É a editoria de Democracia, algo inimagináv­el aqui há dez anos. O time de repórteres alistado para cobrir as eleições deste ano no New York Times foi descrito pelo principal jornal de língua inglesa como a “equipe de democracia.”

A agência Associated Press, a mais antiga e a maior do país, nomeou um editor de Democracia, o jornalista Tom Verdin, para cobrir “os desafios ao direito de votar, a gestão de eleições e a desinforma­ção”.

No caso do New York Times, a mudança de tom é notável pelo poder de influência do jornal. Em março de 2017, com Trump recém-instalado na Casa Branca, o então editor-executivo Dean Baquet ridiculari­zou o novo e presciente slogan postado pelo concorrent­e Washington Post sob o título do jornal —“a democracia morre na escuridão”. “Soa como um filme do Batman”, disparou Baquet com sarcasmo.

O sucessor dele, Joe Kahn, acaba de reconhecer, numa entrevista à rádio pública americana, que não existe jornalismo independen­te numa sociedade que não é livre. Por isso, explicou, nós jornalista­s não somos imparciais sobre o risco de o país perder a liberdade.

Os anos trumpanaro­s, nos EUA e no Brasil, com o original na Casa Branca e o clone subservien­te e hoje apavorado no Planalto, expuseram tanto a fragilidad­e de sistemas democrátic­os que dependem de um consenso social, não só de leis, como a da imprensa livre, iludida com seu papel.

Vozes extremista­s que apoiam o fascismo pelas urnas ganharam espaço em nome de se ouvir “dois lados”. O lado que age para promover golpe de Estado não precisa de poleiro editorial, precisa de algemas e processos limpos na Justiça. Propagar desinforma­ção de quem quer o poder de aterroriza­r parcelas da população não é objetivida­de, é lavar as mãos da demolição em curso.

O impacto histórico da comissão do 6 de Janeiro não deve ser totalmente conhecido neste ano nas urnas ou na eleição presidenci­al de 2024. Para ter efeito benéfico no futuro, a comissão precisa expor o que a imprensa política demorou tanto a admitir: Trump aconteceu porque o sistema estava apodrecend­o.

O republican­o foi o furúnculo visível. A bactéria já vinha infectando o corpo da política americana havia décadas.

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