Folha de S.Paulo

Eduardo Cifuentes Justiça reparatóri­a tem problemas, mas vai fechar feridas das Farc

Tribunal criado depois de acordo de paz na Colômbia viu ex-guerrilhei­ros confessare­m mais de 21 mil sequestros

- Sylvia Colombo

Bogotá Em um lado do tribunal estavam ex-membros das Farc (Forças Armadas Revolucion­árias da Colômbia), com seu líder Rodrigo Londoño, o Timochenko. A audiência, em que foi apresentad­o um relatório que lista mais de 21 mil sequestros orquestrad­os pela guerrilha, foi transmitid­a ao vivo aos familiares das vítimas.

Timochenko assumiu “responsabi­lidade individual e coletiva” pelo que chamou de “crimes abominávei­s”. O reconhecim­ento por parte dos líderes do grupo é parte do trabalho da Justiça Especial para a Paz (JEP), tribunal formado com os acordos de 2016 para tentar acabar com o conflito iniciado nos anos 1960.

A JEP será a responsáve­l pelos casos envolvendo guerrilhei­ros e militares acusados de delitos no período, e emitirá, em breve, condenaçõe­s aos envolvidos. Em geral, não envolvem sentenças de prisão.

Eduardo Cifuentes, presidente da JEP, diz acreditar que o mecanismo fechará as feridas abertas pelas Farc. Ele também afirma que uma ampliação da justiça reparatóri­a deve ser um debate entre o presidente eleito, Gustavo Petro, e a sociedade colombiana.

Qual é seu balanço da gestão da JEP desde o início dos trabalhos?

Nestes quatro anos e meio, a JEP passou por várias etapas. Na primeira, enfrentamo­s o desafio de criar o mecanismo pelo qual passam os casos apresentad­os, desde a denúncia. Depois veio a formação das equipes de investigaç­ão e de preparação das acusações. O propósito era fundar um novo sistema de Justiça.

Depois tivemos de superar obstáculos colocados pelo presidente Iván Duque, que tentou diminuir as funções da JEP. Ele não teve sucesso, mas perdemos um tempo importante.

Depois veio a etapa de abertura dos primeiros macroproce­ssos, que juntam várias causas relacionad­as a um mesmo delito. Hoje temos sete deles abertos e estamos a caminho de abrir novos, com os quais esperamos avançar de forma rápida e rigorosa na investigaç­ão, no julgamento e na condenação dos mais graves crimes cometidos durante o conflito armado com as Farc.

O que esperar dos macroproce­ssos?

Nesse início de audiências, apresentam­os um panorama que demonstra a quantidade de sequestros investigad­os e registrado­s. Nesse caso, fizemos a investigaç­ão a partir de 900 relatórios entregues por vítimas, organizaçõ­es civis e entidades do Estado.

Os processos mais avançados são o dos sequestros por parte das Farc e o dos “falsos positivos”, que envolvem militares como autores de massacres a civis, fazendo-os passar por guerrilhei­ros. Nesta semana, há a admissão pública dos ex-guerrilhei­ros. Depois será a fase da determinaç­ão de sentenças. É um trabalho que teve dificuldad­es, mas que não se desviou do objetivo de fechar as feridas de 50 anos da guerra interna por meio de uma justiça reparatóri­a, para trazer condições à reconcilia­ção da sociedade.

O conceito de justiça reparatóri­a foi recebido com rejeição por um setor da população. Isso está mudando?

O conceito de justiça a que muitas sociedades estão hoje acostuves madas é o de uma justiça punitiva. Foi a partir de experiênci­as de países como Irlanda do Norte, Ruanda e África do Sul que começamos a conhecer novos modelos. Adotamos o primeiro modelo de justiça reparatóri­a para os integrante­s dos grupos paramilita­res, em que eles se desmobiliz­aram [devido a um acordo com o Estado, 35.317 paramilita­res entregaram suas armas e receberam penas reparatóri­as entre 2003 e 2006].

A JEP é a segunda vez em que aplicamos uma justiça com enfoque reparatóri­o na Colômbia. Foi criada para investigar e punir os mais gracrimes de uma guerra muito longa e cruel entre compatriot­as. Isso abriu feridas profundas e, obviamente, pode produzir resistênci­a em certos setores políticos mais favoráveis a uma vitória militar que a uma solução negociada. Estamos convencido­s de que essas resistênci­as vão cedendo e que a possibilid­ade de fechar essas feridas já não vai parecer algo improvável.

O tempo que a JEP tem para trabalhar será suficiente para processar os casos e os delitos levantados?

O nosso mandato é de 15 anos. Levando em conta esse trabalho robusto que se realizou até hoje, esperamos contar com a informação e com os insumos suficiente­s para alcançar nosso objetivo no tempo determinad­o. Ainda é cedo para falar da JEP trabalhand­o por mais tempo, ou em casos distintos dos das Farc, mas a porta ficará aberta. É um debate que deve se dar entre o novo presidente [Gustavo Petro] e a sociedade. O mecanismo está criado e pode ser adaptado a um novo conflito ou para encerrar um enfrentame­nto com outro grupo hostil.

Nós criamos um sistema de justiça de penas reparatóri­as, não punitivas, que acreditamo­s ser capaz de trazer paz aos colombiano­s e o fechamento deste ciclo, o da guerra com as Farc. Sua aplicação em outros casos depende de decisões políticas.

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