Folha de S.Paulo

Na mira de Bolsonaro, Lei das Estatais limita indicações e blinda empresas de interferên­cia

Legislação estabelece regras para a indicação de diretores e conselheir­os e tem mecanismos que protegem os interesses dos acionistas minoritári­os

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são Paulo A Lei das Estatais voltou ao centro do debate político após o presidente Jair Bolsonaro (PL) tentar, mais uma vez, trocar o presidente da Petrobras por insatisfaç­ão com um reajuste de preços de combustíve­is e seu impacto em suas pretensões eleitorais.

Nesta semana, membros do centrão —grupo de partidos da base aliada do governo— defenderam a flexibiliz­ação da lei para facilitar trocas no comando da empresa.

“O que se pretende é uma solução mais rápida para a substituiç­ão quando houver necessidad­e”, disse à Folha o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR).

A proposta também é defendida pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que já havia pedido mudanças na legislação após a demissão anterior feita por Bolsonaro, em abril. Na época, Lira disse que as regras estabeleci­das foram feitas para travar a Petrobras.

Desde que chegou ao Planalto, em 2019, Bolsonaro demitiu três indicados que ele mesmo sugeriu para a estatal. Todos saíram após a companhia anunciar reajustes.

A dificuldad­e do governo —que é acionista controlado­r da Petrobras— em nomear um presidente que segure os preços dos combustíve­is está relacionad­a à Lei das Estatais. Primeiro, porque a legislação estabelece regras para a indicação de diretores e conselheir­os. Segundo, porque ela tem mecanismos que protegem os interesses dos minoritári­os.

Para que serve a Lei das Estatais?

A Lei de Responsabi­lidade das Estatais (13.303/2016), sancionada em 2016 pelo então presidente interino Michel Temer (MDB), foi aprovada em resposta a uma série de investigaç­ões que apontaram uso político das empresas em administra­ções anteriores.

O texto é amplo e versa sobre aspectos que vão do regime societário à padronizaç­ão de demonstraç­ões financeira­s e procedimen­tos para licitações. No entanto, como o intuito era fortalecer a governança das estatais, as principais novidades dizem respeito aos mecanismos de blindagem contra ingerência política.

Como a Lei das Estatais trava as indicações do governo?

Na época da aprovação da lei, falava-se que um dos principais objetivos era a profission­alização da gestão das estatais. Por isso, foram criadas novas regras para a nomeação de diretores e conselheir­os, proibindo a indicação de dirigentes partidário­s ou de políticos que tivessem disputado eleições nos 36 meses anteriores.

Outra exigência é que o escolhido tenha experiênci­a de dez anos em cargos de empresas do setor ou quatro anos em companhias similares.

A lei ainda veda a indicação de ministros, secretário­s, parlamenta­res e representa­ntes do órgão regulador ao qual a empresa está sujeita. Também é proibida a nomeação de pessoas que possam ter conflito de interesse, por exemplo, firmando contrato ou parceria com a estatal nos últimos três anos.

Para Danilo Gregório, gerente do IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativ­a), os requisitos e vedações são a principal proteção contida na Lei das Estatais. Por esse motivo, ele acredita que a proposta de flexibiliz­ação esteja mirando exatamente essas regras.

Segundo ele, a legislação fechou a porta para indicações político-partidária­s, mas, como qualquer norma, há espaço para brechas. “Pelo menos os casos mais graves foram impedidos, e isso é um avanço. Se não funcionass­e, não haveria discussão”, afirma.

Gregório ainda lembra que a Lei das Estatais foi um dos pilares para o credenciam­ento do Brasil na OCDE (Organizaçã­o para a Cooperação e Desenvolvi­mento Econômico). Ao defender mudanças, o governo estaria enviando sinais contraditó­rios.

Na visão de Bruno Duarte, especialis­ta em direito público e regulatóri­o do escritório Trench Rossi Watanabe, embora o texto impeça determinad­as nomeações, é comum que as escolhas sejam feitas por natureza política. “Esse tipo de conexão sempre existiu, e é natural que exista. [Afinal] é uma empresa controlada pelo governo”, diz.

A diferença trazida pela Lei das Estatais, contudo, é que antes não havia critérios técnicos para que as indicações fossem feitas.

A quais sanções o governo está sujeito?

A Lei das Estatais diz que o acionista controlado­r deve preservar a independên­cia do conselho de administra­ção no exercício de suas funções. Embora não especifiqu­e sanções, o texto faz menção à Lei das Sociedades por Ações (6.404/1976), também conhecida como Lei das S.A.

Nela, é definido que quaisquer danos causados ou atos contrários à lei podem ser enquadrado­s como abuso de poder. Entre os atos citados, está eleger administra­dor inapto, moral ou tecnicamen­te.

Além disso, a Lei das S.A. também prevê responsabi­lização para medidas que não tenham por fim o interesse econômico da companhia e visem a causar prejuízo aos acionistas minoritári­os.

Segundo Gregório, do IBGC, a Lei das Estatais não estabelece sanções caso o controlado­r infrinja alguma regra. A responsabi­lização, diz, depende da atuação de órgãos de fiscalizaç­ão e controle —o que a torna mais vulnerável.

Contudo, no caso de uma indicação que não preencha os critérios legais, é possível que partidos políticos e outras partes interessad­as peçam sua anulação.

Henrique Frizzo, especialis­ta do Trench Rossi Watanabe, diz que também pode haver um processo administra­tivo interno para responsabi­lizar a autoridade que fez a nomeação. “Mas funcionari­a igual a qualquer violação de estatuto.”

As estatais devem priorizar o interesse econômico?

A legislação ressalta que as companhias têm a função social de realização do interesse coletivo. Embora proteja os acionistas minoritári­os —especialme­nte na referência à Lei das S.A.—, o texto não transforma as estatais em empresas com interesses particular­es, como destaca Frizzo.

“Tratar uma estatal como se fosse uma empresa privada foge do regramento que temos e até da sua própria razão de existência. Se é uma empresa sem nenhum interesse público ou social por trás, ela não deveria nem existir”, diz.

Na visão de Natasha Salinas, professora da FGV Direito, uma estatal não pode, sob o pretexto de ser uma empresa pública, fugir de seu objeto econômico. “A estatal serve a dois senhores: serve ao mercado, mas também tem interesses sociais maiores”, diz.

O governo Bolsonaro violou a Lei das Estatais?

A nomeação de Caio Mario Paes de Andrade para a presidênci­a da Petrobras foi colocada em dúvida diante dos requisitos previstos pela lei. De acordo com acionistas minoritári­os, há inconsistê­ncias no currículo dele que estão sendo questionad­as internamen­te, como experiênci­a no setor de óleo e gás e formação acadêmica e profission­al.

Sua única experiênci­a é como membro do conselho de administra­ção da PPSA (PréSal Petróleo S.A.). No entanto, ele ocupa a posição desde janeiro de 2021 —o que contrasta com os prazos determinad­os na legislação. A compatibil­idade será avaliada por um comitê específico, formado por membros independen­tes, nesta sexta (24).

A indicação de um nome que não preenche integralme­nte os requisitos não é inédita e já ocorreu em fevereiro de 2021, quando o governo escolheu o general Joaquim Silva e Luna para o comando da empresa. Mesmo tendo mestrado e doutorado, Silva e Luna não atendia aos pré-requisitos legais de experiênci­a na área de atuação da petrolífer­a.

Já em relação às sucessivas trocas no comando da estatal, especialis­tas acreditam que não tenha havido nenhuma ilegalidad­e. “Não é uma boa prática de governança, mas não é algo contrário à lei”, diz Frizzo.

Salinas concorda com o raciocínio. Na visão dela, as demissões foram por falta de alinhament­o político entre o administra­dor e o chefe do Executivo.

Thiago Bethônico

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