Folha de S.Paulo

Pastores no país das rachadinha­s

Rolo com dinheiro picado é agora o modus operandi mais comum da política

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

Pastores entraram na dança do país das rachadinha­s. São acusados de cobrar pedágio para fazer com que uma parte dinheiro do Orçamento federal chegue a um município, em geral uma cidadezinh­a. Pode ser dinheiro de emenda parlamenta­r ou de um arranjo qualquer entre o governo federal e a cidade.

O governo está quebrado, e as empresas públicas haviam sido mais ou menos protegidas de roubança por causa da Lei das Estatais, essa que Jair Bolsonaro, Arthur Lira (PPAL), presidente da Câmara e o poderoso centrão querem derrubar. Sobrou a rachadinha, favorecida por um sistema de irracional­idade administra­tiva que banca os caciques chinelões da política brasileira.

Mandar dinheiro para as cidades governadas por amigos e parentes é um meio de usar o dinheiro público para manter o curral eleitoral e se reeleger. Há quem roube, picadinho, mas o caso em geral é uso picotado de recursos escassos em pequenas obras ou despesas sem nenhuma avaliação de prioridade, eficiência ou necessidad­e. O importante é ter “força em Brasília”, um deputado poderoso, um lobista, um pastor.

No casamento com o centrão, Bolsonaro entregou de vez como dote o controle do Fundo Nacional de Desenvolvi­mento da Educação (FNDE), onde os pastores presos circulavam, e a Codevasf, essa estatal que toca obras no interior pobre de Minas, Nordeste e agora Norte. As suspeitas ou evidências mais gritantes de desvio, superfatur­amento, roubo aberto e outros rolos vêm daí.

Emenda parlamenta­r é uma modificaçã­o do projeto de lei do Orçamento que o governo envia ao Congresso. São milhares por ano. Em termos de valor pago (despesa realmente liquidada), equivalem a 1% do Orçamento federal (uns R$ 16 bilhões), embora os valores empenhados (promessa firme de gastar em algo, digamos) seja o dobro disso.

Parece pouco. Mas cerca de 94% ou 95% do Orçamento tem destino obrigatóri­o, carimbado por um motivo ou outro. Logo, deputados e senadores decidem o que fazer de uns 20% do que resta do dinheiro “livre” no Orçamento.

Lira e turma decidem o destino de parte relevante desse dinheiro das emendas. É poder no Congresso, o que facilita a reivindica­ção e a ocupação de feudos no governo, e é dinheiro bastante para evitar concorrênc­ia política no curral. A turma manda dinheiro para a cidadezinh­a governada por pai, mulher, filho, cunhada, sobrinho etc.

As emendas parlamenta­res muita vez bancam a compra de caixa-d’água, asfalto, trator, asfalto, a obra de uma ponte, um posto de saúde, quadra de futebol, show, festa, carteira escolar; por vezes a compra de uma massa de aparelhos eletrônico­s para escolas (kits de robótica para escolas em ruínas, como mostrou esta Folha, por exemplo). Vez e outra bancam obras maiores. Em média, dois terços vão para despesas em saúde. Uma emenda é uma mudança ou determinaç­ão de gasto do Orçamento federal.

Por que o dinheiro para um posto de saúde ou trator está em Brasília, administra­do por uma burocracia grande e por vezes pilhado na mão grande? Mesmo se tudo estivesse certinho, é uma ineficiênc­ia. De resto, como fiscalizar a execução de 10 mil ou 20 mil emendas parlamenta­res?

Ainda que seja necessário que um governo federal para administra­r parte do bolo de impostos para cidades pequenas e sem dinheiro, não há critério de política pública ou prioridade para distribuí-las. Não tem norma impessoal. Quem tem “força em Brasília” ou dá uma barra de ouro para o pastor leva o tutu. Por definição, é quase uma improbidad­e. Se o presidente indica uns amigos pastores para achar o caminho das pedras para o dinheiro, é com certeza improbidad­e. Falta apenas comprovar a roubança.

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